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Carlito – remando contra a maré (Capítulo III)

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Carlito – remando contra a maré (Capítulo III)
Gustavo junqueira

Capítulo III: Remando a favor da maré (parte 3 de um total de 4)

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O Rio de Janeiro estava se tornando uma metrópole atraente e sedutora durante a I Guerra Mundial quando, já mais para o final do conflito, Carlito desembarcou lá de trem querendo ganhar o mundo. A capital tinha vivido sua “Belle Epoque” e se transformado em todos os aspectos. O prefeito Pereira Passos, repetindo em menor escala o que o Barão de Haussmann havia feito em Paris meio século antes, deu início, de 1902 a 1906, a uma remodelagem do centro da cidade destruindo cortiços e casas velhas, rasgando novas vias e construindo prédios e monumentos. O grande destaque foi a Avenida Central, inaugurada em 1904 ligando a Praça Mauá (Porto) até a Avenida Beira-Mar encostada na Gloria, com 33 metros de largura e 1.800 metros de comprimento. Imitava uma avenida parisiense e já em 1912 passaria a se chamar Rio Branco, a mais célebre artéria de circulação, lazer e economia do Rio e do país.

Carlito, ex-atleta do Flamengo – Foto: Acervo Pessoal

Os costumes também mudavam. O modo de se vestir, agora menos pesado e sisudo para ambos os sexos, com menos lã e mais tecidos leves. A imprensa ia a todo vapor, com mais de uma dezena de jornais diários e outra de revistas circulando. Bares, salões, livrarias, teatros, museus e cafés pipocavam por toda parte dando à cidade ares cosmopolitas que atraiam escritores, artistas, empresários e sonhadores de todo o Brasil. Até 20 anos antes, os esportes, com exceção do turfe, e mesmo assim movido a apostas, eram pouco considerados e quem os praticava gente que não era levada a sério. Quase não se viam homens exibindo porte atlético e não havia a cultura de praia, para quem a cidade dava de costas. Os tempos mudavam e com ele o perfil das elites, agora em busca de novas emoções.

Pode parecer difícil acreditar, mas somente quando Carlito chegou ao Rio o remo estava perdendo sua condição de esporte mais popular da capital para o futebol. No dia 24 de setembro de 1905, com a realização de uma regata e a presença do presidente Rodrigues Alves, a cidade inaugurava o Pavilhão da Enseada de Botafogo, ou simplesmente Pavilhão de Regatas. Com estrutura de ferro importada da França, arquibancadas, tribuna de honra, restaurante, bar e salão de chá, o local atraia milhares de torcedores e curiosos em busca de lazer aos finais de semana e só seria desmontado em 1928 quando o palco das competições foi transferido para a Lagoa Rodrigo de Freitas. Carlito já assistira a uma regata no pavilhão anos antes e desde então sabia que queria tomar parte daquilo e experimentar aquela atmosfera, não da arquibancada, mas de dentro de um dos barcos que singravam as águas calmas com tração a músculos em raias de até dois mil metros.

O clube do coração já era o Flamengo e as vitórias da agremiação comemoradas, nos últimos anos, através de jornais como o Correio da Manhã ou O Paiz que chegavam em Poços de Caldas ou Juiz de Fora de trem. Não à toa a agremiação, criada em 1895, passou a se chamar Clube de Regatas do Flamengo e só em 1911 criaria seu departamento de futebol. O Club de Regatas Botafogo, fundado em 1894, e o Club de Regatas Vasco da Gama, de 1898, comprovavam a força do remo, entre outras equipes como Boqueirão, Gragoatá e Santa Luiza, a maioria com sedes e garagens de barcos espalhadas entre a Rua Santa Luzia e o Passeio Público até a Enseada de Botafogo.

Quando o jovem Carlito apareceu por lá, o Flamengo havia sido bicampeão carioca de remo em 1916 e 1917. Não foi difícil para ele conseguir um lugar na equipe, o treinador logo percebeu sua força e determinação acima do comum. Havia prometido ao pai que logo procuraria uma vaga numa clínica odontológica para tentar recomeçar a carreira, mas sua atenção estava voltada ao remo. Os treinos aconteciam pela manhã e depois Carlito aproveitava para se exercitar nos halteres ali mesmo em frente à praia do Flamengo. Aos vinte anos, estava forte e confiante como nunca antes. Mostrou-se versátil em diferentes barcos e funções, seja no skiff para um, dois ou quatro remadores, com tamanhos de oito a 13 metros, ou no quatro ou oito com timoneiro, com barcos maiores. Gostava mais de competir em equipe neste último onde chegou a atuar como meia nau, o remador do meio do barco; proa, responsável pelo equilíbrio; e até sota-proa, o atleta mais próximo da proa, mas se encaixou melhor e ficou mais à vontade como voga, aquele que impõe ritmo à remada.

Com as mesadas que a mãe Celina fazia chegar de Poços de Caldas mesmo com o descontentamento do seo Cruz, para quem fazia alguns serviços pontuais na capital, Carlito conseguia viver sem exageros morando numa pensão em Santa Teresa, circulava de bonde para lá e para cá e aos poucos conhecia aquela incrível cidade e suas atrações. Em 1918 chegou a ganhar algumas medalhas em regatas, mas tudo parou em outubro, logo após o navio Demerara, vindo da Europa, desembarcar no Rio, após paradas no Recife e Salvador, passageiros contaminados com a Gripe Espanhola. Foi o caos e, em menos de um mês, cerca de 15 mil pessoas, entre as mais de 1 milhão que viviam na cidade, morreram. Carlito escapou da moléstia ou teve apenas uma manifestação suave, talvez pelo seu histórico de atleta. Quem não teve a mesma sorte foi o presidente reeleito Rodrigues Alves, que faleceu em janeiro de 1919.

Tão rápido quanto surgiu, a praga desapareceu antes do Carnaval transformando a festa popular numa grande celebração de vitória. Carlito, um pé de valsa e folião de bem com a vida, aproveitou as festas com os novos amigos do remo, fazendo sucesso e exibindo os músculos para o público feminino que ganharia cada vez mais liberdade e autonomia nos anos 20. Num corso na Avenida Rio Branco, em meio à folia de confetes e desfiles, esbarrou com uma mulher de pele bem branca, cabelos curtos, tornozelos à vista, lábios pintados e fumando. A abordagem foi natural e na primeira troca de palavras notou que era estrangeira, misturando palavras em português, espanhol e francês, língua que Carlito se virava bem.

Sentaram num café para conversar e ela contou que se chamava Petra, tinha fugido da Hungria ainda pertencente ao Império Austro-Húngaro no início da guerra, passara um tempo em Buenos Aires e vivia há um ano no Rio. Não demorou a dizer que trabalhava na Praça 11, ponto de encontro da boemia carioca, onde inúmeras estrangeiras se prostituíam em bordéis na chamada Zona do Mangue, com quase dois quilômetros de extensão. Carlito se interessou por ela e a atração foi recíproca, tanto que ela nem lhe cobrou a ardente e criativa noite de sexo que tiveram. O que ele teve que pagar foi pela cocaína, de uso comum naqueles tempos entre as profissionais do sexo e também uma forma de fidelizar os clientes mais interessados no efeito da droga.

Aquela foi a primeira experiência de Carlito com o pó branco, que não era ilegal e por isso estava fora do radar da polícia. Ele gostou do efeito das aspiradas, do poder proporcionado e da sensação de prazer e confiança que despertaram. Mas tudo não passava de diversão carnavalesca e seu interesse, pensou, era recreativo. Estava focado no remo e, vez ou outra, se divertiria com Petra e seus aditivos. E assim, aos 22 anos, quase 1m80 de altura e 82 quilos de músculos cada vez mais fortes e bem torneados, levou o restante de 1919 e chegou a 1920 disposto a brilhar no esporte. E assim fez.

Titular da equipe do oito com, a mais disputada e a que contava com mais torcedores, Carlito foi campeão carioca com o Flamengo em 1920 no yole 8 remos “Aymoré”, que cruzou a linha de chegada em primeiro lugar sob o aplauso de mais de 15 mil torcedores que lotavam o Pavilhão de Regatas e arredores. Com competições organizadas pela Federação Brasileira de Sociedades de Remo, em âmbito estadual, e pela CBD – Confederação Brasileira de Desportos, criada em 1916, as vitórias se acumularam, como na Prova Clássica América do Sul. Ao lado de remadores de renome como Arnaldo Voigt, campeão carioca individual em 1919, 1920 e 1921, ou Everardo Peres da Silva, Carlito conquistou projeção e respeito no esporte remando a favor da maré nos incríveis anos 20 do Rio de Janeiro.

Os treinos aconteciam pela manhã e ele aproveitava para se aperfeiçoar com os halteres em frente à garagem de barcos da praia do Flamengo, participando de competições de levantamento de peso. Depois perambulava pela cidade, característica que marcaria o seu jeito irrequieto para sempre: andar, conversar rapidamente com diferentes pessoas no caminho, tentar realizar pequenos negócios e se divertir. Passava com frequência na Livraria Leite Ribeiro na Rua Bittencourt, no Largo da Carioca, onde folheava as novidades das prateleiras e acompanhava o movimento dos clientes, muitos artistas, jornalistas e personalidades. A livraria havia superado a Garnier e a Francisco Alves em importância e imponência com seu suntuoso prédio e extensa fachada, e passaria a ser chamada de Freitas Bastos a partir de 1922.

Foi lá que conheceu Theo Filho, jornalista, escritor e cronista, que lhe contara dos tempos em que viveu em Paris e como as noitadas na cidade-luz impressionavam com mulheres lindas e liberadas, cafés lotados, livre consumo de drogas e outras loucuras. Um dos poucos pertences que restaria a Carlito no final de sua vida seria um livro de Theo Filho. Gostava de ler e não deixou de apreciar e se interessar pelas obras de Lord Byron, Alfred de Musset e Henrich Heine, entre outros, que relatavam experiências com drogas e seus efeitos. Também na livraria, ou em alguns saraus para descolados, encontrava gente do naipe de Eugenia Moreyra, jornalista e esposa de Alvaro Moreyra, que juntos formavam um dos casais mais influentes da cena cultural da capital nos anos 20. Carlito já a conhecia dos tempos de Juiz de Fora, onde a charmosa e chamativa Eugenia, precursora do feminismo no Brasil, viveu até a adolescência.

A presença no Rio e os constantes deslocamentos permitiram a ele também ser testemunha ocular da história, participando por exemplo do cortejo do cronista João do Rio, com cerca de 100 mil pessoas, em junho de 1921, ou observando o movimento de tropas federais a caminho de Copacabana em julho de 1922 para combater o levante tenentista conhecido como os 18 do Forte. O remo continuou, por alguns anos, ainda sendo seu eixo de manutenção de uma vida ainda regrada, mas acompanhada de excessos pontuais. Neste período estava envolvido com alguns negócios, provavelmente de representação, numa empresa chamada J.F. & Co, que publica um anúncio na edição de 27 de janeiro de 1923 do Correio da Manhã, esclarecendo e informando que Carlito passaria a assinar Carlos da Gama Cruz, pois um homônimo, Carlos Cruz, da Carlos Cruz & Co, que atuava na comércio de drogas, estaria lançando títulos sem lastro na praça. Uma ironia…

Três anos depois, em novembro, o jornal “A Manhã” traz uma notícia com a Liga Metropolitana convocando clubes e remadores a definirem uma solenidade para entrega de prêmios relativos a torneios e campeonatos de 1923 a 1925. Os nomes do Flamengo e de Carlito estão lá. Por estes tempos ele afrouxa os treinamentos e começa definir seu destino, uma raia longa e turbulenta de quase meio século. Carlito “visitou” Petra mais algumas vezes depois daquele Carnaval de 1919 e, numa delas, experimentou ópio num dos casebres insalubres que os chineses gerenciavam na Zona do Mangue. Apreciou o efeito da droga, mas considerou a letargia excessiva por longas horas deitado, ainda mais para alguém que precisava da energia para os treinos de remo.

Ficou sabendo que Petra se suicidara depois que uma sífilis e o consumo excessivo de cocaína dizimaram a saúde e os nervos da antiga amante. Isto não o abalou, pois continuava com uma vida social intensa em saraus, teatros, cafés, festas e até nos bordéis, e não tinha muita paciência com as formalidades requeridas pelas moças de família naqueles tempos. O casamento seria algo para o futuro, pensava. Mulheres e diversão não lhe faltavam naquele momento, que continuasse assim por uns bons anos.

Num dos encontros festivos com amigos da noite, resolveu experimentar morfina. Era vendida nas farmácias do Rio em ampolas, sem grandes dificuldades, e poderia ser aplicada na coxa, por cima da roupa, com uma simples espetada de agulha. Já tinha visto alguns camaradas usarem, mas procurava evitar, até porque a formação como dentista o ensinara que o uso desta droga poderia gerar dependência. Seu futuro, infelizmente, foi selado naquela brincadeira inconsequente motivada pela curiosidade e pelo desejo de ir um pouco mais longe no prazer e no lazer.