Home Notícias Cotidiano Bolsonaro é fascista?

Bolsonaro é fascista?

0
Bolsonaro é fascista?
Rubens Russomanno Ricciardi, colunista do Portal Thathi

Os seguidores mais fieis de Bolsonaro (olavetes, crentes neopentecostais, milicianos etc.) dizem que ele não é fascista, porque o fascismo, tal como entendem, é de esquerda.

Primeiramente, devemos perguntar, o que é esquerda e direita na política? Daí podemos adentrar na questão do fascismo.

Lembremo-nos que todo conceito, a ser estudado, deve ser definido desde sua origem (no momento quando surge enquanto neologismo). Vamos estudar o processo de formação de alguns neologismos – este tipo de palavra nova (ou num novo contexto) que retrata uma realidade inédita ou existente anteriormente.

Entre os neologismos, os conceitos com lastro filosófico devem ser diferenciados daqueles que se restringem a fatos datados, mesmo que intensamente dinâmicos em seus desdobramentos históricos e repletos de contradições. Diferentes são também os neologismos inventados enquanto conceitos filosóficos ou por alguma razão epistemológica (da teoria do conhecimento), cujos autores são conhecidos, daqueles nomeados em contingências históricas, em geral de autoria anônima. Portanto, é importante sempre relacionar o neologismo/conceito a um autor ou a um fato histórico, porque sua definição e uso dependem destas condições de origem.

Um neologismo pode designar toda uma nova dimensão epistemológica, tal como em Heráclito de Éfeso (séculos VII e VI a.C.), quando propôs o conceito de lógos, inaugurando a filosofia:

Ouvindo não a mim, mas ao lógos, é sábio concordar ser todo-um (…) Desse lógos, sendo sempre, são os homens ignorantes tanto antes de ouvir como depois de o ouvirem; todas as coisas vêm a ser segundo esse lógos, e ainda assim parecem inexperientes, embora se experimentem nestas palavras e ações, tais quais eu exponho, distinguindo cada coisa segundo a natureza e enunciando como se comporta. Aos outros homens, encobre-se tanto o que fazem acordados como esquecem o que fazem dormindo (com tradução direta do grego por Alexandre da Silva Costa).

Em Heráclito, o lógos, conceito filosófico por excelência, designa tanto as leis da natureza e suas linguagens, como também a inteligência crítico-inventiva do ser humano e suas linguagem artísticas, filosóficas e atreladas ao conhecimento como um todo. O conceito de lógos foi tão revolucionário na Antiguidade que, sete séculos depois, ainda fulgurava como um dos protagonistas no Novo Testamento, tal como no início do Evangelho segundo São João:

No princípio era o Lógos e o Lógos estava com Deus e o Lógos era Deus. No princípio, ele estava com Deus. Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito. O que foi feito nele era a vida, e a vida era a luz dos homens; e a luz brilha nas trevas, mas as trevas não a apreenderam (Jo, 1, 1-5).

Está claro que não se promovem mais discussões filológicas entre os cristãos, conferindo notas de rodapé às sagradas escrituras – algo talvez contraproducente para a doutrina. Mas nem sempre foi assim. Um dos primeiros eruditos do cristianismo, Clemente de Alexandria, teólogo e autor sacro grego nos séculos II e III, dedicou boa parte de sua teoria às concordâncias do Novo Testamento com a filosofia grega dos séculos anteriores, em especial Heráclito. Contudo, estas concordâncias foram rejeitadas pela política da Igreja. Clemente de Alexandria não foi traduzido na Idade Média para o latim, e, no século XVIII, acabou sendo excluído do calendário hagiológico (dos santos) pelo papa Benedito XIV. A Igreja não apreciou a representação de Jesus enquanto personagem histórico, como aquele que provavelmente tenha sido um bom leitor dos clássicos gregos. Mas Clemente de Alexandria nos deixava clara a relação:

E se consentes mencionar aquele dito: “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!” (Lc, 14, 35), tu encontra-lo-ás assim formulado por Heráclito de Éfeso: “ignorantes: ouvindo, parecem surdos; o dito lhes atesta: presentes, estão ausentes” (tradução de Alexandre da Silva Costa).

O conceito de lógos foi traduzido posteriormente em latim por verbum (palavra, verbo) ou por ratio (racionalidade), ambas traduções redutivas que empobrecem o sentido original e se distanciam de Heráclito. Mas tanto a palavra em si, como também sua dimensão filosófica, foram novidades no neologismo lógos, mantendo-se como conceito fundamental também no cristianismo, mesmo que, no contexto cristão, Heráclito não seja mais lembrado. Ou seja, o filósofo foi esquecido pela arbitrariedade, mas seu conceito permaneceu vigente. Assim, não se deve subestimar a capacidade de um neologismo na transcendência de culturas, ainda mais quando se transforma num conceito fundamental do conhecimento humano.

Por outro lado, há conceitos novos que retratam realidades existentes anteriormente e que não são relacionados a um autor em específico. São os casos, por exemplo, dos neologismos que surgiram simultaneamente nos tempos da Revolução Francesa de 1789: vanguarda, terrorismo, ideologia e a já referida divisão entre esquerda e direita na política. Todos estes quatro conceitos, com enorme repercussão mundial, designam processos históricos com desdobramentos os mais contraditórios. Entre eles, só o conceito de ideologia vai adquirir posteriormente uma dimensão filosófica por conta da crítica marxista. Vamos estudá-los um pouco.

Os franceses apreciavam metáforas militares. Nos tempos da Revolução Francesa, o militante passou a ser aquele agente político ou membro de um partido. Vanguarda (o pelotão mais à frente, destacado por sua inteligência, com dinâmica especial de combate) também era um conceito militar que se tornou político. Dizia-se dos políticos mais à esquerda, com ideias novas, com novas lutas pela liberdade, igualdade e fraternidade.

Em meados do século XIX, a vanguarda passa da política às artes, designando os artistas com posturas políticas à esquerda. O hoje esquecido Gabriel Désiré Laverdant, em seu livro Da missão da arte e do papel do artista (1845), propôs pela primeira vez o conceito de vanguarda na literatura:

A arte, expressão da sociedade, manifesta, em seu ímpeto mais alto, as tendências sociais mais avançadas; ela é precursora e reveladora. Ora, por saber se a arte cumpre dignamente a própria missão de iniciadora, se o artista se encontra verdadeiramente à vanguarda, é necessário saber para onde caminha a humanidade, qual é o destino da espécie.

No início do século XX, Lenin confere uma nova acepção da vanguarda na política, referindo-se à Revolução Russa de 1917, chamada então de “vanguarda do proletariado”.

Mas o conceito de vanguarda tomou, desde então, rumos já distantes de sua origem. Com as vanguardas históricas na arte (futurismo italiano, formalismo russo, dadaísmo franco-germânico, impressionismo francês, expressionismo alemão etc.), as origens políticas à esquerda do conceito foram esquecidas. As vanguardas autoproclamadas do século XX tornaram-se obsessivas pela irreverência e pela mera inovação do material artístico, tornaram-se herméticas e pobres de mundo, muitas vezes alheias a toda crítica contrária à ideologia, distanciando-se, assim, do contexto político original.

Baudelaire foi quem melhor definiu a vanguarda na arte, prevendo, ainda no século XIX, a realidade que iria se instaurar no século XX, num processo de desconstrução semântica do conceito:

Os poetas de combate. Os literatos de vanguarda. Esses hábitos de metáforas militares denotam espíritos não militantes, mas feitos para a disciplina, isto é, para o conformismo, espíritos nascidos domésticos.

Charles Baudelaire, desconstruindo o conceito de vanguarda, numa foto por volta de 1863

Apesar desta crítica de Baudelaire, podemos ainda assim retroagir o conceito de vanguarda a épocas anteriores. Não há como negar, por exemplo, que Homero, Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Catulo, Virgílio, Dante, Shakespeare, Cervantes, Goethe, e tantos outros, tenham sido literatos de vanguarda em suas épocas, pois fundaram a história por conta de suas poéticas revolucionárias. O mesmo ocorre também nas demais áreas das artes, filosofia e ciências. Contudo, se há sentido na análise de processos históricos do passado, torna-se insustentável, hoje, a manutenção do conceito de vanguarda referente à produção contemporânea. O conceito de vanguarda se tornou obsoleto e a metáfora perdeu a graça. Já há muito cansada e exaurida, a vanguarda deixou de ser experimental no momento em que passa apenas a reiterar ad nauseam (à exaustão) seus clichês, como no caso da arte conceitual (nas artes visuais, por exemplo). Nada há de mais anacrônico (despropósito histórico) que chamar de vanguarda qualquer movimento artístico, político ou científico no século XXI. Confirmou-se a profecia de Baudelaire.

Outro fato histórico de enorme repercussão temos no conceito de terrorismo (La grande Terreur), de junho de 1793 a julho 1794, com a execução estimada de até 40.000 suspeitos de serem “inimigos da Revolução”. Na França, do final do século XVIII, o neologismo retratava o terror da guilhotina decapitando nobres e demais reacionários, tal como justificava um dos líderes jacobinos, Maximilien de Robespierre: “conduzir o povo com a razão e dominar os inimigos do povo por meio do terror”, alegando ainda, como argumento, as necessidades urgentes da Pátria na instauração de democracia, justiça e virtude.

Rei Luis XVI da França sendo executado na guilhotina (1793, iconografia de época)

O terrorismo de Estado nasceu, portanto, num contexto revolucionário de esquerda. Robespierre acabou, ele próprio, decapitado na guilhotina por seus excessos de brutalidade, pondo fim àquela onda de terror. Infelizmente, não foi a última vez que um político de esquerda promoveu um banho de sangue. No século XX, Stalin, na União Soviética, refutando toda filosofia marxista, cometeu ainda outros milhares de crimes para defender uma revolução, cujos ideais originais, do mesmo modo, já estavam há muito perdidos.

Tribunal da Inquisição retratado pelo pintor italiano Alessandro Magnasco (século XVIII)

Violências semelhantes, mas sempre à direita, houve desde muito antes, como no caso, entre tantos outros, do Tribunal de Sangue em Bruxelas, instaurado em 1567 pelo militar castelhano Duque de Alba (o Conde Egmont, tornado célebre pelas obras de Goethe e Beethoven, foi uma de suas vítimas), e da própria Inquisição Católica (tendo durado do início do século XIII até o final do século XVIII). Avalia-se que, na Europa, o número possa ter chegado a 9 milhões de pessoas, acusadas de heresia, torturadas e executadas (muitas delas queimadas vivas na fogueira) pelo Tribunal do Santo Ofício.

Outro caso de terrorismo praticado pela classe dominante temos na Guerra dos Camponeses (1524-1526), com a tortura e o assassinato de mais de 70.000 plebeus. Martinho Lutero, traidor dos camponeses, atrelando desde então sua religião protestante, recém fundada, aos interesses dos grandes senhores, assim recomendou que se procedesse contra aqueles revolucionários, posicionando-se

contra os camponeses assaltantes e assassinos: eles devem ser aniquilados, estrangulados, perfurados, no privado e no público, abatidos como um cachorro louco.

Jäcklein Rohrbach, um dos líderes dos camponeses, sendo queimado vivo em 1525

Aqueles camponeses do século XVI, vítimas do terrorismo dos nobres, são hoje reconhecidos como grandes precursores na luta pelos direitos humanos. Contudo, é interessante constatar que, pelo menos desde Martinho Lutero, os que lutavam por justiça social já eram condenados, não por seus ideais revolucionários, mas sim com o argumento de que eram “ladrões”.

Bertolt Brecht definiu o regime de Hitler por seu “terror e miséria”. No século XX, além do Holocausto promovido pelos nazistas, várias outras ações genocidas podem ser definidas igualmente por seu terrorismo, como o Holocausto Armênio (com o assassinato de cerca de 1,5 milhões de armênios), praticado pelos turcos do Império Otomano, no início do século, entre outras atrocidades e crimes contra a humanidade.

Já o conceito de ideologia, outro neologismo dos tempos da Revolução Francesa, teve em Napoleão Bonaparte seu primeiro crítico, quando tecia uma caricatura dos “ideologistas”, supostamente por seus “sistemas abstratos” e “distantes da realidade”. Contudo, com Karl Marx e Friedrich Engels o conceito adquire um significado filosófico. A ideologia passa a ser a crítica contrária à dominação: distorção e engodo na política e no conhecimento, quando uma falsa autoridade procura se legitimar em meio à manipulação de aparelhos de poder.

Portanto, quando Bolsonaro chama de “ideologia” as ações políticas da oposição, seja por má fé ou por ignorância, ele se distancia tanto do conceito filosófico como de sua acepção histórica.

Vale lembrar que Marx foi influenciado pelo poeta Heinrich Heine, o qual chegou a antecipar conceitos que o filósofo Marx eternizaria logo em seguida. Até mesmo a famosa fórmula, “a religião é ópio do povo”, havia sido adiantada por Heine, quando este publicou anteriormente que a religião é o “ópio espiritual” para uma “humanidade sofredora”. Segundo Marcelo Backes, “se Marx afirmou no Prefácio da Crítica da filosofia do direito hegeliana que a crítica da religião é o pressuposto de toda crítica, Heine a praticou antes de Marx fazer sua constatação”. É por isso que se diz, no pensamento crítico-filosófico, que a religião é o fenômeno ideológico por excelência.

Não obstante também o uso não filosófico do conceito, como por órgãos de imprensa e por políticos (quando se reduz à representação política ou a um programa partidário), a ideologia é um neologismo sempre ainda vigente na crítica de assuntos contemporâneos (indústria da cultura, sistema financeiro, fascismo, neoliberalismo etc.), se observada a acepção marxista, a única de fato filosófica.

Por fim, em relação à esquerda e direita na política, o neologismo se referia à posição, na recém fundada Assembleia Nacional (equivalente ao nosso hoje Congresso Nacional), das duas maiores correntes políticas da Revolução Francesa: os jacobinos (representantes dos pobres, trabalhadores das cidades e do campo, bem como pequenos burgueses, que se sentavam à esquerda no parlamento) e girondinos (representantes da burguesia rica, que se sentavam à direita no parlamento). Apesar do acontecimento histórico datado na Revolução Francesa, podemos retroagir o significado da então nova expressão, direita e esquerda na política, também a contextos históricos anteriores.

A esquerda tem a ver com a urbanidade, conceito romano reiterado no Iluminismo. De Kant ao mestre-de-capela anônimo da Bahia, autor de um Recitativo e Ária (1759) em português (hoje arquivado no IEB-USP), refere-se à “vossa urbanidade”, ou seja, a urbanidade é um elogio à formação crítica (Bildung), ética, estética, epistemológica da pessoa, com apoio às artes, respeito pelo bem público e com todo cuidado para com a comunidade. Os gregos diziam politikós, algo como “alguém que exerce sua cidadania”.

Já a direita, historicamente caracterizada por sua condição mesquinha, encaixa-se melhor na descrição do idiótes ou idiotikós grego – que de modo algum deve ser confundido com o sentido moderno de idiota em português. São palavras que se parecem, mas cujo significado é bem diverso. O idiótes, no sentido grego, pode ser até muito inteligente, esperto. Contudo, está sempre “voltado a interesses particulares”, algo como “assuntos do homem privado”.

Assim, na esquerda há sempre a preocupação com o bem estar de toda uma coletividade. Já a direita se aproxima do lema “cada um por si, e Deus para os ricos”.

Se aceitamos esta acepção, diferenciado o politikós (o cidadão de esquerda) do idiotikós (o homem privado da direita), vamos compreender que “o marxismo nada mais é que a secularização do Sermão da Montanha”, tal como comparou o autor teatral Heiner Müller.

De fato, o Novo Testamento é um dos documentos históricos mais ricos em pensamentos de esquerda, descrevendo a missão cristã de “evangelizar os pobres”, “proclamar a remissão aos presos” e “restituir a liberdade aos oprimidos” (Lc, 4, 18).

Para o pensamento original cristão, quando duas pessoas se juntam para falar de Deus, daí inevitavelmente entra em cena a demagogia. A oração não deve ser um acontecimento social, mas sim individual e secreto. Não é nas igrejas e nos templos que se deve rezar, mas sim em casa, trancado no quarto, para que ninguém veja, nem saiba de sua fé:

Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto e, fechando tua porta, ora ao teu Pai que está lá, no segredo; e o teu Pai, que vê no segredo, te recompensará (Mt, 6, 6).

No Novo Testamento deve ser combatido o espírito dinheirista, tal como ocorre hoje no sistema financeiro de capitalização (com a especulação sendo priorizada, em detrimento do setor produtivo):

Não ajunteis para vós tesouros na terra, onde a traça e o caruncho os corroem e onde os ladrões arrombam e roubam, mas ajuntai para vós tesouros nos céus, onde nem a traça, nem o caruncho corroem e onde os ladrões não arrombam nem roubam; pois onde está o teu tesouro aí estará também teu coração (Mt, 6, 19-21).

Precavei-vos cuidadosamente de qualquer cobiça, pois, mesmo na abundância, a vida do homem não é assegurada por seus bens (Lc, 12, 15).

Ninguém pode servir a dois senhores. Com efeito, ou odiará um e amará o outro, ou se apegará ao primeiro e desprezará o segundo. Não podeis servir a Deus e ao Dinheiro (Mt, 6, 24).

Não leveis ouro, nem prata, nem cobre nos vossos cintos, nem alforje para o caminho, nem duas túnicas, nem sandálias, nem cajado, pois o trabalhador é digno do seu sustento (Mt, 10, 9-10).

Em verdade vos digo que um rico dificilmente entrará no Reino dos Céus. E vos digo ainda: é mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus (Mt, 19, 23-24).

Jesus alertou contra os falsos profetas, os quais se utilizam da religião para o próprio enriquecimento, entre outros charlatanismos:

Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós disfarçados de ovelhas, mas por dentro são lobos ferozes (Mt, 7, 15).

Nem todo aquele que me diz “Senhor, Senhor” entrará no Reino dos Céus (Mt, 7, 21).

Então Jesus entrou no Templo e expulsou todos os vendedores e compradores que lá estavam. Virou as mesas dos cambistas e as cadeiras dos que vendiam pombas. E disse-lhes: “Está escrito: minha casa será chamada casa de oração de todos os povos. Vós, porém, fazeis dela um covil de ladrões!” (Mt, 21, 12-13).

Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Sois semelhantes a sepulcros caiados, que por fora parecem bonitos, mas por dentro estão cheios de ossos de mortos e de toda podridão. Assim também vós: por fora pareceis justos aos homens, mas poder dentro estais cheios de hipocrisia e iniquidade (Mt, 23, 27-28).

Portanto, não obstante o neologismo datado na Revolução Francesa, a condição da esquerda enquanto práxis política remonta às mais antigas lutas contra a injustiça, contra a exploração e contra a escravidão. Desde sempre houve revolucionários como Espártaco, que simplesmente não aceitaram a desigualdade das sociedades humanas.

E sobre esquerda e direita política, se ambas as expressões são anteriores a Marx e ao socialismo, por que então não mantê-las também após Marx e a queda do socialismo? Podemos definir como esquerda política, hoje, numa perspectiva sempre dinâmica, as reivindicações para que o Estado democrático seja competente para garantir a alta qualidade em saúde, educação (e por consequência da segurança), transportes e infraestrutura, sem perder de vista a defesa do meio ambiente, entre outras políticas públicas essenciais, bem como o fomento às ciências, às artes e aos esportes – entre outras atividades humanas que dificilmente lograrão êxito se reféns de interesses privados.

A direita, por sua vez, pode ser definida de modo menos drástico, enquanto doutrina neoliberal, cuja meta é a privatização de todos os setores acima citados, ou mais drástico, por suas implicações históricas com o capital financeiro imperialista e mesmo fascista.

A esquerda do século XXI não é mais comunista. Não existe mais programa comunista depois de 1989, depois colapso da União Soviética e depois da queda do Muro de Berlim. A esquerda hoje não pretende mais a estatização dos meios de produção, mas sim luta pela democracia, pelos direitos humanos e pelo estado social.

A direita, por sua vez, tal como observamos hoje no governo B17, quer o estado mínimo, quer privatizar tudo, quer aniquilar as instituições (previdência, universidades, sistema de saúde, natureza, direitos trabalhistas e humanos etc.), e deixar tudo por conta da economia livre de mercado, sob domínio do capitalismo financeiro.

Então, vamos à questão inicial deste nosso ensaio. O séquito B17 afirma que Bolsonaro não é fascista, porque o fascismo é de esquerda. Além disso, seus seguidores alegam que no fascismo o Estado é forte, e que, no caso do Bolsonaro, ele prega o Estado mínimo. Portanto, relacionam a ideia de um suposto Estado forte do fascismo ao programa da esquerda.

Lictor (funcionário público) com sua fasces (daí fascismo), símbolo do poder, numa iconografia romana, inspiração para Mussolini

Vamos definir fascismo. Segundo Georgi Dimitrov, teórico búlgaro,

o fascismo é a ditadura terrorista do capital financeiro, a mais reacionária, chauvinista e com mais elementos imperialistas.

Vejam só, o capital financeiro é sempre de direita! A esquerda, por sua vez, privilegia o setor produtivo, os trabalhadores. Hoje, no Brasil, não há partido mais reacionário e chauvinista que o PSL. Aliás, Bolsonaro fica o tempo todo combatendo um tipo de esquerda que sequer existe mais (como se estivéssemos na Guerra Fria de antes de 1989).

Bolsonaro age sob ordens do Steve Bannon, um governo que privilegia o imperialismo dos EUA, abrindo mão de sua própria soberania (a entrega da Base de Alcântara, do Pré-Sal e da Embraer, são provas irrefutáveis dessa submissão, desse entreguismo).

E por várias vezes o presidente declarou que é a favor da tortura e da ditadura, alegando que o povo também é a favor. Assim, as violências praticadas pelo exército e pela polícia contra a população, em ações armadas, resultando na morte já de muitos cidadãos, inclusive crianças, em especial no Rio de Janeiro, são claras evidências de se tentar estabelecer no Brasil um tipo de terrorismo ditatorial de Estado.

O fascismo é um movimento político fundado por Mussolini, tendo sido o sistema de poder na Itália de 1922 até 1945. Sob influência de Mussolini, Hitler estabelece seu poder nazifascista de 1933 a 1945, na Alemanha.

Em outros momentos da história, manifestações fascistas, em flagrantes violações dos direitos individuais, também afloraram nos mais diversos países, como nos EUA dos anos 50 do século passado, na caça às bruxas do Macarthismo. Artistas e intelectuais antifascistas, como Charles Chaplin, Hanns Eisler e Brecht, entre outros, foram perseguidos e tiveram que deixar o país.

Contudo, o nazismo de Hitler foi a forma mais destruidora e assassina do fascismo. Vamos focar em seu perfil.

Ao contrário da argumentação do séquito B17, Hitler jamais preconizou o Estado forte. Seu projeto de poder estava atrelado à iniciativa privada, aos bancos e às milícias, passando pelas grandes indústrias, incluindo-se setores tecnológicos de ponta.

Ferdinand Porsche, à esquerda, apresenta a Hitler seu projeto Volkswagen (carro popular)

Como sabemos, o ministro da economia atual no Brasil é um fervoroso defensor da capitalização do sistema financeiro. Já o ministro da justiça, com sua proposta de privatização da polícia (num projeto sinistro, uma espécie de Lei Rouanet do Judiciário), faz-nos lembrar o espírito das milícias de Hitler: a Sturmabteilung (SA) e Schutzstaffel (SS), com o setor privado financiando e interferindo diretamente nestes contingentes paramilitares.

Hugo Boss assinava os uniformes do Terceiro Reich – Estado mínimo e empreendimentos capitalistas em todos os setores nazistas

Até os campos de concentração e de extermínio dos nazistas tinham vínculos inequívocos com a iniciativa privada. Só para darmos um exemplo, a famosa empresa Siemens construiu seu próprio setor produtivo em Ravensbrück, local destinado ao trabalho forçado de mulheres.

Esquema da SIEMENS em Ravensbrück, o campo de concentração nazista onde Olga Benário Prestes ficou presa

Portanto, a ditadura terrorista do nazifascismo é de extrema direita, sendo o Estado mínimo, com a privatização até dos campos de concentração e das milícias, a marca principal de seu espírito capitalista. Ainda mais assustador é que o Brasil caminha a passos largos em meio a empreendimentos bastante semelhantes.

O gás venenoso Zyklon B, utilizado nos campos de extermínio, foi um empreendimento altamente lucrativo das empresas capitalistas Tesch & Stabenow/Degesch.

Umberto Eco propôs há poucos anos um neologismo filosófico, para descrever a condição fascista que transcende todo e qualquer momento histórico. Ele chamou de Ur-fascismo, algo como “fascismo originário, embrionário”, ou talvez “fascismo eterno”. Temos que ter cuidado, muito cuidado aqui no Brasil, pois como diz o poeta, “a cadela do fascismo está sempre no cio”.

É isso que desejamos, um Brasil entregue à arbitrariedade?