Associação de pacientes obteve autorização para plantar maconha para fins medicinais no Rio de Janeiro

No Brasil, milhares de pacientes utilizam medicamentos à base de cannabis para algumas doenças, como epilepsia, autismo e Parkinson

Foto: Imagem ilustrativa/Reprodução

A Justiça Federal do Rio de Janeiro autorizou nesta quarta-feira (15/07) uma associação de pacientes a cultivar cannabis para fins medicinais.

Essa é a segunda decisão do tipo no Brasil — a primeira foi dada a um grupo da Paraíba.

Dessa vez, o juiz Mario Victor Braga de Souza, da 4ª Vara Federal do Rio de Janeiro, autorizou a Associação de Apoio à Pesquisa e a Pacientes de Cannabis (Apepi) a plantar cannabis, realizar pesquisas e fornecer medicamentos para os pacientes associados.

A Apepi foi formada em 2014 por Margarete Brito, mãe da garota Sofia, que sofre da síndrome CDKL5 — uma síndrome rara que causa convulsões e problemas de desenvolvimento.

Brito foi uma das primeiras pessoas no Brasil a conseguir autorização judicial para cultivar maconha para o tratamento médico.

Hoje, a Apepi tem 600 associados. Mas atualmente fornece o óleo de cannabis para cerca de 60 pessoas — crianças com epilepsia, adultos com ansiedade crônica e idosos com Parkinson, entre outros.

O óleo produzido pela entidade, que contém vários canabinoides como THC e CBD (canabidiol), é extraído por meio de um processo de evaporação com etanol. Ele é administrado em gotas colocadas sob a língua — a quantidade varia para cada paciente.

No últimos anos, diversos estudos científicos apontaram que substâncias extraídas da cannabis sativa, como o canabidiol (CBD) e o tetra-hidrocanabidiol (THC), seu princípio psicoativo, podem ser usados para fins medicinais, em terapias para pacientes com epilepsia, câncer e outras enfermidades graves.

A Apepi entrou na Justiça em setembro do ano passado, e teve parecer favorável do Ministério Público Federal e apoio da Fundação Oswaldo Cruz.

“Nós decidimos informar no processo que já estávamos plantando e fornecendo o óleo”, explica Ladislau Porto, advogado e coordenador da Apepi.

“A estratégia foi sensibilizar o juiz para o fato de que nós, membros da associação, além de dezenas de pacientes com problemas graves, poderíamos ser presos caso houvesse alguma operação policial.”

No Brasil, plantar maconha é crime. Repassar ou vender a erva, ou mesmo seus derivados, pode ser enquadrado como tráfico de drogas, com pena de prisão.

Falta de regulamentação

Na decisão publicada hoje, o magistrado afirmou que já existem diversos estudos que comprovam a eficácia da cannabis no tratamento de doenças.

“Diversos estudos demonstram os efeitos positivos da utilização de canabinoides para o tratamento de doenças graves, como Parkinson, esquizofrenia, Alzheimer, esclerose múltipla, artrite reumatoide e epilepsia.”

É preciso ter uma receita médica e autorização da Anvisa para importar maconha legalmente

O magistrado pontuou que não existe regulamentação no Brasil sobre o cultivo da planta para uso medicinal, ainda que, no ano passado, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tenha editado uma norma permitindo a pesquisa e a produção de medicamentos feitos de CBD.

Segundo ele, tanto a Anvisa quanto a União permaneceram “absolutamente inertes quanto a quaisquer iniciativas tendentes a levar a efeito a edição de ato normativo que supra esta lacuna”, escreveu.

E completou: “Daí porque continua se mostrando relevante a atuação do Poder Judiciário neste campo, onde a administração parece preferir não se imiscuir, de modo a garantir o exercício de direitos já estabelecidos em lei, obstaculizados pela simples falta de regulamentação”.

Na decisão, a Justiça não determinou um número exato de plantas que podem ser cultivadas pela Apepi.

Decisões diferentes

Para Ladislau Porto, coordenador da Apepi, a autorização para o cultivo “foi como ter meu terceiro filho.”

“A gente corria o risco de ser presos por plantar cannabis. O próprio associado poderia ocorrer em associação ao

ao tráfico de drogas. O óleo se tornou a única alternativa para muitos pacientes e pais conseguirem o tratamento. Nós entendemos que acima da lei (do tráfico) há a Constituição, que garante o direito à saúde e ao bem-estar”, afirma.
Segundo ele, a procura por medicamentos tem crescido nos últimos meses. “Nosso objetivo são 10 mil plantas em dois anos. Também queremos ajudar outras associações a conseguir a autorização”, diz.
Nos últimos anos, centenas de pacientes têm entrado na Justiça pedindo habeas corpus que autorize o cultivo — mas o número de autorizações chega a poucas dezenas.
Outro movimento é formado por associações de pacientes e pais, que têm plantado cannabis para a produção do óleo — na maioria dos casos, esses grupo cultivam a planta de maneira ilegal, correndo risco de prisão e processos judiciais.
Antes da Apepi, apenas a ONG paraibana Abrace Esperança tinha conseguido essa licença para plantar e fornecer o medicamento para associados, desde que eles tenham prescrição médica.
Hoje, ela atende a centenas de pacientes, que chegam a viajar para o Estado nordestino em busca do medicamento.
Sem regulamentação, a própria Justiça Federal tem dado decisões diferentes sobre o mesmo tema. Na segunda-feira, outra associação de pacientes, a ONG Reconstruir, do Rio Grande do Norte, teve seu pedido negado pelo juiz federal Janilson Bezerra de Siqueira — o Ministério Público Federal se posicionou a favor da liberação nesse caso.
Para o magistrado, não deve ser o Judiciário a decidir sobre o tema. Ele também argumentou que estudos “contraditórios” em relação à eficácia do medicamento sugerem “temor” e “potenciais danos” ao bem-estar dos pacientes.
O juiz também considerou a opinião do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Norte que foi amicus curiae do processo — o órgão historicamente tem se posicionado contra o uso medicinal de cannabis.
Para Felipe Farias, presidente da ONG Reconstruir, a decisão do magistrado potiguar contraria pesquisas científicas que têm demonstrado a eficácia dos medicamentos feitos com a planta.
“O juiz demonstrou medo e preconceito ao decidir sobre o tema. Em uma reunião, ele chegou a dizer que a maconha destruía vidas”, afirma. A associação vai recorrer junto ao Tribunal Regional Federal da 5ª Região, no Recife.
Desde o início do processo, a ONG Reconstruir decidiu interromper o cultivo da planta, temendo operações policiais. Segundo ele, os pacientes da entidade têm recorrido à importação do óleo ou a compra do CBD em farmácias — um frasco do medicamento custa em média R$ 2.100 no Brasil.
“Tem gente plantando em casa, também. Outros estão recorrendo ao tráfico para conseguir a planta. Hoje, a maconha já é liberada no Brasil, mas apenas para quem pode pagar. As pessoas mais pobres ainda estão sofrendo para ter acesso ao medicamento”, afirma Farias.
Para ele, a nova decisão em relação à Apepi, do Rio de Janeiro, é uma “notícia maravilhosa”. “Quanto mais associações tiverem autorização para o cultivo, maior vai ser a pressão no Congresso e no STF para que haja uma regulamentação do tema”, diz.

Regulamentação da Anvisa

Em dezembro do ano passado, a Anvisa mudou a regulamentação sobre cannabis para uso medicinal no Brasil. A norma estabelece as regras para a fabricação e a importação desses produtos, sua comercialização, prescrição, dispensação, monitoramento e fiscalização.
A partir de então, estas mercadorias passaram a fazer parte de uma nova classe — “produto à base de cannabis”. Eles podem ser adquiridos em farmácias, mas não é possível manipulá-los em drogarias. Só é permitida a venda do produto pronto sob prescrição médica.
A nova regra também permite que empresas farmacêuticas possam produzir o remédio, mas os insumos devem ser importados.
Ao mesmo tempo, a maioria da diretoria da agência rejeitou a proposta de regulamentar o plantio da maconha para fins terapêuticos e científicos, sob pressão do governo Jair Bolsonaro, que se coloca contra o cultivo no país.
Três dos quatro diretores da Anvisa presentes na sessão de deliberação votaram por arquivar este ponto da regulamentação — e o único voto a favor da medida foi do então diretor-presidente da agência, William Dib.
Na época, Dib afirmou que a falta de regulamentação sobre o plantio geraria uma onda de processos judiciais. “A Justiça primeiro não vai cassar esse direito de ninguém, porque não está regulamentado. Vai ter mais médicos receitando. Então, não vai ficar igual, as ações só podem crescer”, disse.

Fonte: BBC Brasil

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