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Trânsito: será que precisamos da lei ?

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Para entender o sentido e a direção das regras de Trânsito sancionadas em 13.10.2020, pelo Presidente da República, é preciso uma breve viagem no tempo e na história política do Brasil.

 “Governar é povoar; mas, não se povoa sem se abrir estradas, e de todas as espécies; Governar é, pois, fazer estradas!”. Ao dar novo sentido para a frase de Afonso Pena, Washington Luís Pereira de Sousa – ou simplesmente Washington Luís – gravou seu nome como o primeiro “estradeiro” Presidente do Estado de São Paulo do Brasil (1.920 – 1.924) época na qual o posto de Governador levava essa nomenclatura. Inaugurou o período do desenvolvimento rodoviário brasileiro, sendo uma espécie de bandeirante do asfalto. Levou progresso São Paulo adentro – e Brasil afora.

Washington Luís atuou como Vereador na cidade de Batatais, em 1897 e intendente, em 1898. Ficou conhecido como o “paulista de Macaé”, um carioca que fez carreira no Estado de São Paulo e depois no Brasil. Estudar sua biografia significa conhecer que, um dia, o Brasil reunia homens e mulheres notáveis, também no campo político. Com vasto conhecimento jurídico, bagagem Governamental e política, Washington Luís nunca se voltou para regras do trânsito brasileiro. Vejamos porque.

No ano de 1.908, Antonio Prado, o então Prefeito de São Paulo, criou uma Lei Municipal para emplacar os primeiros veículos motorizados – conhecidos como locomóveis – sendo que a placa 001 foi oferecida a um dos 3 empresários mais ricos do Brasil: Henrique Dumont, pai de Santos Dumont, inventor do avião, que cresceu na nossa região, na Fazenda Arindeuva, em Dumont. Henrique Dumont negou prontamente a oferta de Antonio Prado e justificou que não havia estrada para a circulação de veículos motorizados, de modo que a oferta visava tão somente a cobrança de impostos, sem contrapartida !

No ano de 1.969 o Brasil aderiu às regras da Convenção de Viena para o Trânsito Viário, um tratado internacional de conteúdo técnico exemplar. Porém, somente 12 anos depois, através do Decreto 86.714, de 10 de dezembro de 1.981 foi que incorporamos no nosso ordenamento jurídico as regras aceitas e pactuadas com centenas de países do mundo. Entretanto, em 1.966 já havíamos promulgado a Lei 5.108/66 – Código Nacional de Trânsito (CNT) – regra que, para a época, era muito mais moderna e eficaz que sua sucessora, a atual Lei 9.503/97 – Código de Trânsito Brasileiro (CTB).

O Brasil, que vivia um acelerado progresso econômico entre os anos de 1.950 e 1.960, iniciou a década de 1.970 com uma frota 10 vezes maior que nas décadas anteriores. De 1.970 até hoje multiplicamos por quase 6 vezes essa frota. Junto desse aumento e progresso, a sociedade passou a conviver com as tragédias do trânsito de veículos motorizados, que é a maioria em número de envolvimento com o que conhecemos, até aqui, pela expressão de acidentes de trânsito.

Por todo esse tempo observamos mudanças nas regras de convívio – Leis – que envolvem o uso de veículos motorizados, não motorizados, uso de ciclos/bicicletas e até o simples caminhar. Porém, todos conhecemos os números daquilo que, no Brasil, é tratado por “guerra”. Você, caro leitor, deve conhecer alguém que já sofreu um acidente de trânsito, ou uma família órfã de um membro que tenha sofrido um acidente ou perdido a vida “no” trânsito.

Até onde conheço e estudo, o fenômeno social “trânsito” possui muitos elementos objetivos e subjetivos que podem explicar os resultados do dia a dia e a banalização dos acidentes e mortes que, sob a óptica de nossos políticos, justificam as Leis criadas e os milhares de regulamentos secundários decorrentes dessas leis.

Em primeiro, o que mais marca a personalidade da nossa brasilidade – ou ninguendade, expressão sociológica de Darcy Ribeiro – foi e continua sendo o recorrente autoperdão – de nossos erros – ao mesmo tempo do julgamento sumário – dos erros alheios. Nossos atos e atitudes, no trânsito, seguem o mesmo raciocínio e modo de agir.

Em segundo, por consequência do apontamento anterior, nossas Leis seguem na mesma direção, ressalvando-se que vontade popular não é sinônimo de necessidade popular. Em outras palavras, nossos Legisladores atuais, com expertise e trejeitos dos mais variados, atendem a vontade popular que cada dia mais se distancia da necessidade popular.

Se a Lei de Trânsito, promulgada em 1997, fosse mantida rígida e regulamentasse metade daquilo que propunha era provável hoje estarmos afrouxando muitas regras estabelecidas também por Leis esparsas, criadas ao longo dos anos. Mas acontece exatamente o contrário. Seria leviano, da minha parte, deixar de citar a paternidade e maternidade das mudanças inócuas e descabidas ao longo dos últimos 23 anos de existência do atual Código de Trânsito Brasileiro.

Começando por Fernando Henrique Cardoso, o atual CTB foi mais um ”sonho” outorgado pelo Estado brasileiro através da fórmula da ambiguidade, esta de autoria de FHC e outros que assim fizeram na Constituição de 1988. A própria Lei atual estipulava 540 dias para regulamentação das regras essenciais que cuidam da segurança do trânsito. Passados 23 anos, menos de 1/3 do CTB foi efetivado e, do que foi feito, mais da metade é voltada a arrecadação de tributos (taxas) e emolumentos e privatização de parte das atividades estatais que envolvem até mesmo o poder de polícia administrativo. O legado de FHC foi um trânsito como fonte de renda para a União e Estados, e fonte de problemas para os Municípios – que é onde vivemos.

Na gestão de Lula da Silva o corporativismo foi a marca principal. De 2003 a 2005 havia a fundada esperança de que a legislação de trânsito desse um salto social pois, ao contrário dos 8 anos anteriores, o corpo técnico à frente do Departamento Nacional de Trânsito – DENATRAN – era de alta performance. Nada seria feito às pressas e na pressão, mas havia uma agenda para seguir. De repente, para atender uma necessidade de momento, o referido departamento foi loteado para satisfação da “velha” política e assim segue até os dias atuais. O ato mais promíscuo alterou o artigo 218, no ano de 2006, para atender o interesse da Confederação Nacional dos Transportes – CNT. Como o excesso de velocidade, até 20% acima do limite, era infração grave e entre 20% e 50% da velocidade limite era gravíssima, o computo de pontos suspendia rapidamente os motoristas profissionais, causando extremo ônus para as empresas de transporte. Com a mudança promovida pela Presidência da República, abrandou-se a pontuação e disparou o número de mortos e mutilados em razão das colisões, por excesso de velocidade.

Na gestão Dilma Rousseff o desvio de finalidade, em prejuízo direto da cidadania, foi e continua sendo a marca mais perceptível. Onde havia previsão de penalidade por conta de bloqueio na vias pública – artigo 253 – inclui-se o artigo 253 “A”. Em maio de 2016, dias após a Câmara Federal aprovar o seguimento do processo de impeachment da então Presidente, o Planalto – com aval do Congresso – alterou Lei de Trânsito, impondo multa superior a 20 mil reais, podendo ser aplicada em dobro, quando ocorrer um movimento popular mais denso e agitado. Flagrantemente, a livre manifestação do pensamento, promovido de maneira ativa, em grupo e na rua, foi o foco da proibição.

Na gestão Michel Temer a indiferença e a paralisia administrativa foram os referenciais. O DENATRAN continuou loteado, de forma que pouco seria possível fazer dali em diante, fosse quem fosse a assumir o Governo, ainda que com o aval das urnas, que é o que aconteceu no ano de 2018.

Na gestão atual de Jair Bolsonaro, o que observo é a busca de uma assepsia institucional sem critério e que, com a intenção de acabar com as pragas aderidas no sistema de trânsito, ao longo dos 23 anos anteriores, aparenta jogar a água suja do banho com a criança junto. Em outras palavras, há forte tendência por desregulamentar condutas restritivas e punitivas sob alegação de não representarem “problemas” e ainda serem regras abusivas, por parte do próprio Estado, razão pela qual ou deixam de existir ou são abrandadas em demasia. Mas, de longe, esta aparenta ser a maior investida que prejudicará a qualidade do trânsito, comprometendo inclusive a própria codificação atual, pois agora a própria Lei traz ambuiguidades explícitas. Vamos os exemplos.

Na proposta de alteração atual o Congresso decidiu pela punição de motocicletas que transitassem nos “corredores” com velocidade média ou alta quando os demais veículos circulassem de forma lenta ou não circulassem. O Presidente vetou a punição, de modo permitir que as motocicletas continuem transitando em qualquer velocidade, entre os demais veículos, estando estes em movimento normal, lento ou parados. Porém, permanece a regra do artigo 29, ou seja, todo veículo – inclusive motocicletas – deve circular dentro da faixa de rolamento, ocupando o centro dessa faixa para atender as demais regras (distancia lateral de 1,5 mts para os demais veículos e etc…). Como então é possível circular nos “corredores”?

A renovação periódica da CNH, que daqui 6 meses passa ser (a) de 10 anos para quem tem idade até 50 anos incompletos, ou (b) a cada 5 anos, para quem tem idade de 50 anos completos até 70 anos incompletos ou (c) a cada 3 anos, para quem tem 70 anos completos ou mais, com a ressalva de o médico poder restringir ou ampliar esse prazo, contrasta com as disposições do artigo 1º, § 2º da própria Lei de Trânsito já que o Estado não possui um sistema de controle efetivo para a saúde pública e, portanto, a segurança do trânsito fica deveras comprometida. Na atualidade, são muitos os casos de pessoas que sofrem o chamado “mal estar” ao volante e acabam envolvidas em acidentes graves e até fatais. Sem um melhor controle da saúde pública o Estado passa ser coadjuvante da negligência particular. Mas é bom deixar claro que o que hoje ainda existe é insuficiente e inadequado para garantia da segurança do trânsito. Porém, sendo a cada 5 anos, uma filtragem ainda acontece.

O aumento da pontuação que leva à suspensão da CNH, hoje regrada em 20 pontos e independente da classificação – leve, média, grave ou gravíssima – é outra ambuiguidade em relação ao mesmo artigo 1º, § 2º e ainda deve resultar em novos dissabores para Governos e governados. Isso porque o ilícito privado pode aumentar, seja este, a distribuição de pontos, do infrator para as carteiras de parentes e amigos, sistematizando uma nova burla popular, para alegria de poucos e tristeza de todos. Para ajudar a não punição dos infratores, ainda foi alterado o artigo 267, obrigando a conversão em advertência para infrações leves ou médias se, no prazo de 12 meses, o condutor não possuir outra qualquer. Além disso – anote bem, caro leitor – nossos Congressistas criaram um novo mecanismo para cooptar adeptos e simpatizantes porque, ocorrendo a diminuição de 40 para 30 pontos em caso de o condutor sofrer uma infração gravíssima ou voltando aos 20 pontos atuais, em caso de o condutor receber 2 infrações gravíssimas, no prazo de 12 meses, certamente assistiremos novas e pontuais mudanças da Lei de Trânsito alterando de gravíssima para grave algumas punições. Essa será a nova burla legislativa, claro, em “prol,” do cidadão!

Outra mudança importante mas não sensível aos proprietários de veículos é o novo, confuso e horrível texto do artigo 134. Hoje o referido artigo impõe a obrigação de o proprietário/vendedor informar e provar para o órgão de trânsito, em 30 dias, que vendeu e para quem vendeu seu veiculo. A obrigação do comprador e a respectiva punição, caso ele não adotar as medidas necessárias para transferência, já estava no artigo 123, § 1º. Porém o texto do artigo 134 obriga o proprietário anterior (vendedor) a pesquisar se, no prazo de 60 dias, o comprador cumpriu com sua obrigação, sendo que se assim não fizer poderá “… se responsabilizar solidariamente pelas penalidades impostas e suas reincidências até a data da comunicação”

Interessante foi que, no caso acima, o Presidente da República vetou a aplicação da multa mas o efeito jurídico vai permanecer, além do fato de o Estado impor, ao cidadão/ex proprietário, o papel de fiscal de renda/tributos pois o efeito da transferência de veículos, para o Estado, é a certeza da arrecadação. A responsabilidade civil e penal, inerente ao cidadão/ex proprietário, não importa para o Estado (!).

Já que as mudanças foram muitas, minhas críticas – construtivas e de interesse público – também são e não acabam aqui. Mas há também boas mudanças, inclusive, por meio de veto de mudanças assombrosas. Por exemplo a permissão do Congresso para emissão de autorização especial de trânsito para composições que transportariam cargas divisíveis. O Congresso alterou o artigo 101, possibilitando veículos maiores para cargas que poderiam ser transportadas por meio de vários veículos, na maioria, caminhões. Se for para frente tal medida – e pode acontecer, já que o Congresso pode “derrubar” esse veto – certamente assistiremos centenas de combinações de veículos no meio urbano, sob pretexto de transportar mais carga de maneira mais eficiente – e barata. Ou seja, um só caminhão para tracionar 3, 4 ou 5 composições (reboques). O veto se deu não por questões de segurança do trânsito mas sim porque o Governo alega que não possui estrutura para  emitir a enxurrada de pedidos de autorização especial para esses veículos, calculando – pasmem – um aumento de 11.272 % no numero de pedidos, desde já !

Além disso, o Presidente afastou uma entendida reserva de mercado no momento que vetou a  exigência de especialidade de medicina de tráfego e psicologia do trânsito para os profissionais médicos que queiram atuar nos exames médicos. Até porque o Brasil não possui essa especialidade, em grade curricular adequada e igual países do estrangeiro. Nem mesmo na área do Direito isso existe por aqui. Eu mesmo, popularmente apresentado como especialista de trânsito, tenho especialidade em Direito Público, que é a área que abrange a matéria do trânsito e transporte. Estudo mais e por minha conta as questões de trânsito porque, no Brasil, tudo neste tema é vinculado às diretrizes do Estado e não do interesse privado, da sociedade. Portanto, o Presidente agiu certo. Mas, aquela promessa de todo e qualquer médico atestar a saúde dos condutores, ficou para a próxima.

Outra mudança positiva que vale mencionar é que toda e qualquer alteração ou implementação de regras, de competência do Conselho Nacional de Trânsito – CONTRAN – somente deve acontecer após consulta pública com 30 dias de antecedência. Se isso será apenas um novo “sonho” para a democracia e a soberania popular, o tempo dirá e eu comentarei, no futuro bem próximo.

Por fim, a supressão do direito à pena alternativa em caso de crimes de trânsito que resulte em lesão corporal ou morte, envolvendo ou não embriaguez ao volante, não passa de uma quimera legislativa contrária à atual política penal brasileira, ainda incipiente do ponto de vista civilizatório. Aliás, a fórmula usada já é conhecida pela população: O Congresso e o Governo pregam mais rigidez nos casos de lesão e morte mas, do ponto de vista jurídico, será o STF que dará a palavra final. Igual acontece com a discussão do teor alcoólico para caracterizar ou não a embriaguez ao volante, que começou em 2009 e até hoje não terminou. Não que, no início da alteração, incautos ao volante ou assassinos contumazes deixarão de responder pelos crimes que praticarem. A palavra empregada aqui é ESPERANÇA, mas que resulta do verbo esperar e não do substantivo feminino usado por Millôr Fernandez, quando profetizou que… “O Brasil está condenado à esperança”.

Termino enaltecendo o exemplar político Washington Luís Pereira de Sousa, que do direito à política galgou todas funções essenciais do Estado brasileiro, além de ter ele atuado na nossa região (Batatais) e ser contemporâneo de Henrique Dumont, a quem dou crédito de Engenheiro e empresário exemplar.

E esse crédito decorre dos atos que Washington Luís não adotou para o trânsito da época, embora ele reunia todas condições intelectuais, morais e políticas para fazê-lo. O que percebo, ao estudar o tema trânsito e transporte, é que as leis só devem existir, nessa área, se forem para promover a segurança pública e do trânsito, de forma plena, seguindo por um bom tempo sem alteração e alinhada com a necessidade de formar uma consciência que não veja, na punição, a única forma de educar.

Washington Luís foi além, embora em silêncio. Sabia ele que democracia é regime de maioria. Mas democracia de verdade, eficaz, duradoura e proveitosa, só acontece quando as regras veem de baixo para cima, para atender necessidades e expectativas boas de uma maioria consciente. Se assim não for, o que temos são regras de Estado, à exemplo dessas que comento terem sidos criadas à partir de 1.997. Deveremos cumpri-las, claro, pois não temos outra opção – ainda.

Mas a lei que funciona mesmo somos nós que promulgamos, com base naquilo que podemos aproveitar das regras escritas pelo Estado e, principalmente, na regra de ouro: “Ama o próximo como tu mesmo” (o pronome correto é tu, pois Deus apontou para nós).