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Tália e Mara

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Tália e Mara
Carolina Sampaio é escritora

Parecia um quarto vazio. Mas se você prestasse atenção, veria que não era bem um quarto. Era mais como um minúsculo sótão, com muita poeira, uma caixa d’água e nenhuma janela. Havia um colchão junto à pilastra central com um travesseiro surrado, mas esse era o máximo de aconchego que o aposento mostrava. Ninguém deveria viver ali. Entretanto, em cima do fino colchão havia, amarrada à pilastra e amordaçada, uma jovem mulher frágil e mirrada, cujos olhos já não mais brilhavam. Ela se encolhia desconfortavelmente, tentando descansar – há dias que não dormia.

Subitamente, o alçapão que conectava aquele cômodo ao resto da casa se abriu, e dele emergiu uma mulher quase igual à primeira, mas cujos ossos não tentavam, protuberantes, rasgar a pele, e cujos olhos ainda brilhavam. Sua pele era mais corada e seus cabelos, mais brilhantes e sedosos, e ela trazia consigo uma bandeja com duas porções de comida e dois copos de suco.

– Olá – ela disse, alegremente, enquanto deixava a bandeja no chão e retirava as amarras e mordaça da outra. – Eu trouxe almoço.
– Nossa. Agora o meu dia está bom – a mulher franzina usou o máximo de sarcasmo que conseguia.
– Anime-se. Vamos almoçar juntas, como nos velhos tempos que você tanto gosta de lembrar.
– Quer dizer os velhos tempos, quando eu poderia ter acesso ao resto da casa e ao resto do mundo? – Com dificuldade, ela se sentava, usando os fracos músculos de seu corpo para se ajeitar.
– Deixe disso. Sabe que eu não posso deixar você sair, você corre desenfreadamente tomando o controle de tudo em nossas vidas. Eu não consigo existir com você lá fora.
– Antes eu que você, então, é isso?
– Claramente – a recém-chegada já se alimentava, enquanto a outra só ficava olhando tudo aquilo com desprezo. – Coma, ou então eu terei que te amarrar e você vai ficar com fome até a hora do jantar.

Então a franzina comeu, contrariada, e resolveu não mais responder às tentativas de sua irmã de fazer daquela uma tarde alegre. Mara, a desgostosa, achava a alegria constante de Tália, a saudável, um tanto quanto hipócrita – ainda mais desde que a tinha trancado ali. Pode parecer ao leitor desavisado que o aprisionamento da gêmea amarga no sótão teria sido um ponto de ruptura e estrago no relacionamento das duas, mas a verdade é que elas nunca se deram bem.

Gêmeas, foram trazidas à luz em meados de junho. A primeira filha, chamada Tália, emergira num fim de tarde não muito quente, depois de poucas horas de parto, e indicou logo aos seus pais que tudo estava bem. Chorou o necessário, mas não mais do que isso. A mãe, no entanto, começou ali seu sofrimento. Até que Mara saísse de dentro de si, horas se passaram e muitas dores foram sentidas. A caçula nasceu numa noite que já indicava o inverno vindouro. Ela chorava durante vários minutos, porém não muito alto, pois já naqueles tempos era frágil.

Tália foi para casa criar vínculos com seus pais. Mara ficou na incubadora por semanas. E mesmo ao voltar ao lar da família, ela era tímida e passava o tempo todo quieta. Aos seus olhos, a primogênita era uma força viva a ser admirada, mas ela não conseguia fazer-se escutar daquela forma. Apesar das pessoas se preocuparem – e muito – com ela, é verdade que não gostavam dela tanto quanto da outra.

E assim cresceram. Tália encantando a todos e Mara sempre ao fundo.

Ao fim da adolescência, tudo já havia mudado. Mara sentia raiva de sua irmã, pois julgava que toda aquela alegria não poderia ser real. Ela poderia ver que não era, pois era a única a testemunhar quando a energia exacerbada da irmã se tornava raiva, ódio, e tantas outras coisas ruins. E isso a impulsionava a falar. Desferia palavras amargas, que faziam com que Tália finalmente se escondesse atrás da vergonha e não quisesse mais se expor. E foi então que a preferida percebeu: quanto mais livre Mara estivesse, mais ela a destruiria.

Com a morte dos pais num acidente de carro, Mara ganhou ainda mais força. Durante anos, Tália sentiu que sua vida era dominada pela caçula e que esta não a deixava aparecer: dominava amigos, familiares, tudo.

Até que a mais velha a prendeu no sótão.

– Se você me odeia tanto assim, não sei por que ainda vem almoçar comigo. Quer se sentir melhor com sua própria monstruosidade? – Mara alfinetou, melancólica, metade por manipulação e metade por mágoa verdadeira.
– Quer saber? – Tália finalmente explodiu, deixando a comida de lado e recolhendo tudo bandeja. – Eu desisto. Todas as vezes que estamos juntas, você me enlouquece. Você é um perigo pra minha sanidade, e eu não consigo passar nenhum segundo aqui – ela passou a amarrar a irmã novamente, esquecendo-se, na ânsia, de amordaçá-la. – Você vai ficar sem almoçar, eu vou colocar uma tranca naquela porta e aí você pode fazer todas as suas refeições na sua própria companhia, já que gosta dela tanto assim. Não que eu entenda por quê!

Naquele dia, a primogênita saiu cheia de raiva dentro de si – não havia espaço para mais nada. Em pouco tempo, comprou e instalou as trancas, e então a rotina daquelas duas mudou. Para Tália, isso significava sair mais para almoçar com seus amigos – ela tinha muita dificuldade em ficar sozinha – e para Mara, significava mais tempo para pensar.

Todos os dias, três vezes por dia, Tália deixava comida na entrada do sótão. Sem dizer uma palavra, sem trocar olhares com sua companheira de vida, ela apenas fazia o mínimo necessário.

Contudo, menos tempo com Mara significava mais tempo sozinha. Tendo passado toda uma vida ventilando cada pensamento seu para a pessoa mais próxima – de início Mara, e mais tarde qualquer amigo, conhecido, ou pessoa encontrada por acaso na rua. Era impossível, todavia, passar cada segundo de sua vida em companhia de alguém. E toda a energia de Tália, que costumava cativar tanto aqueles ao seu redor, começou a se acumular dentro de si como uma bexiga tão cheia que só nos resta aguardar o estouro. Ela era uma bomba-relógio.

Enquanto essa energia não aproveitada borbulhava dentro de si, a primogênita seguia com a rotina como se nada tivesse mudado. E, inadvertidamente, deixava tudo aquilo borbulhar, enquanto Mara apenas esperava, silenciosamente, pela oportunidade.

Essa era a diferença crucial entre as gêmeas, caro leitor. Se a mais nova não tinha energia para realizar atividades básicas, a mais velha não conseguia conter a sua. A placidez que era o aconchego da outra era a derrocada da outra. Mara, porém, sabia disso: sem energia para tomar atitudes, ela observava e absorvia com atenção. A sua irmã talvez tivesse conseguido extrair o melhor da produtividade, mas ela era a rainha do ócio produtivo.

Um dia, tomada pelo turbilhão de emoções dentro de si, Tália jogou uma bandeja para dentro do sótão e bateu o alçapão com força acima de si. Saiu irritada para correr – havia tanto em ebulição dentro de si que preferiu se exercitar a comer.

Mara aguardava, silenciosamente, o momento certo de sair. Mas ela não queria sair correndo e gritar – esse era o tipo de coisa que Tália fazia. Ao invés disso, ela saiu vagarosamente de seu cárcere, explorou toda a casa, comeu mais do que deveria e bebeu da mesma forma. Depois, arrastou-se até o quarto de sua irmã, puxou as cobertas e deitou-se na cama.

Quando Tália voltou, a porta estava trancada, mas ela podia ver que alguém tinha estado ali. Então ela viu que o alçapão para o sótão estava aberto – e entrou em pânico. Correu para fora, apavorada, com medo de que Mara tivesse escapado. Viu a cozinha revirada e tentou seguir uma trilha de potes sujos e talheres jogados que deu em lugar nenhum. Então, finalmente seguiu para seu quarto. E aí ela a viu.

– O que você está fazendo aqui? – Ela gritou, acordando a irmã.
– Oi, irmãzinha – Mara esfregou os olhos. – Eu queria um lugarzinho aconchegante e eu não achei outro quarto se não este.
– Saia já da minha cama! – O tom de voz só ia aumentando.
– Por que você está gritando?
– Porque você fugiu do único quarto que existe aqui pra você, e agora está no meu, pronta para estragar a minha vida de novo!
– Eu não quero estragar sua vida, eu só quero um espaço para existir.
– Você só pode existir no sótão.
– Você não vai me arrastar para lá de novo.

Se você estivesse lá, deduziria facilmente que essa foi a gota d’água. Tália avançou para cima da irmã franzina, gritando. Puxava seus cabelos, batia e socava. E gritava. E em retorno, Mara também gritava – mas seus gritos eram amplificados por seu choro, e logo toda a vizinhança podia ouvi-las. Não tardou até que elas pudessem ouvir as sirenes que se aproximavam. Tália se apavorou, mas tentou se recompor e ir à porta dizer que estava tudo bem. A polícia estava quase desistindo quando Mara apareceu, com hematomas no corpo todo e claramente subnutrida, e aqueles homens de uniforme não tiveram outra opção a não ser levar a mais velha com eles.

E as irmãs ficaram sem se falar durante horas, enquanto depoimentos eram colhidos, formulários assinados, e jovens mulheres algemadas. Quando finalmente se falaram, o diálogo foi tão amigável quanto se segue.

– Olá, Tália.
– Eu não acredito que você está aqui.
– Como não estaria? Não posso te abandonar num momento desses.
– Claro que não – Tália bufou. – Eu nunca deveria ter te desamarrado. Toda vez que você aparece, acontecem coisas ruins. Você atrai a desgraça para minha vida.
– Eu? – Mara finalmente deixou o rancor transparecer. – Eu não me tranquei no sótão por meses a fio. Eu não me bati. Você tomou essas decisões, você trouxe a si mesma até aqui.
– Eu fiz o que eu tinha que fazer! – Tália bateu na mesa com toda a força que as algemas lhe permitiam. – Você me obrigou.
– Como? Estando no mesmo ambiente que você? Compartilhando seus amigos e recebendo atenção?
– Eles se afastaram de mim por sua causa! – Ela berrou. – Ninguém queria estar no mesmo ambiente que eu porque você estaria lá também.
– E por isso você me trancou no sótão? Por eu ser estraga-prazeres sem querer? – Mara começava a chorar. – Eu só queria afeto. Meus pais morreram, meus “amigos” não gostam de mim, e minha irmã acha que eu deveria estar amarrada no sótão. Acho que isso aqui não faz mais sentido – ela apontava para cada uma das gêmeas. – Então eu vou embora. Fico na sua casa por um tempo, mas quando você sair você não precisa mais me ver.
– Fico feliz. Você é louca.
– Sim. Mas você trancou a sua irmã no sótão por não conseguir lidar com a tristeza dela. Talvez você seja ainda mais.