Existem limites para o exercício da liberdade de expressão? Pode uma pessoa expressar sua opinião de forma a ofender pessoas ou grupos minorizados, e ainda assim, estar assegurada pela lei? As perguntas – tais quais as respostas necessárias – demandariam uma vasta reflexão. Arriscaremos algumas linhas para o debate.
Fiquemos na limitação da liberdade que é classicamente aceita por liberais, como John Locke, Stuart Mill, Benjamin Constante, Alexis de Tocqueville e tantos outros. A Declaração Universal dos Direitos do Homem em 1789 diz em seu artigo 4º.: “A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudica ao outro”. Temos aqui liberdades positivas: direitos que podemos exercer; mas também, liberdades negativas: os limites necessários para não violar as liberdades alheias.
A liberdade em si é limitada, porquanto, todos fossemos livres para fazer tudo aquilo que quiséssemos, não haveria espaço para permitir o espaço do outro de também ser livre, como se bem lhe aprouvesse. É um aparente contrassenso, mas resguardar as liberdades exige regras, condições e limites para que os abusos não possam vulnerar a condição maior de assegurar a existência da vida humana, digna e plural.
Daí diz-se que a liberdade só será liberdade se assegurada com absoluta responsabilidade. Não existem direitos absolutos. Não vale tudo. Em matéria de liberdade de expressão, a opinião pode ser enunciada, desde que não seja anônima. E, quem expressa sua posição pode ser depois punido se violar a lei: se estiver em veículo de comunicação, pode ser obrigado a se retratar, a publicar um direito de resposta, aos demais, prevê-se ainda indenização por danos morais, e nalguns casos mais graves, sanções de natureza criminal.
Temos, pois, assegurado o direito de falar e, se houver excessos, que se sujeite a punições. A ordem democrática exige e clama pela liberdade de expressão. De ouvir a todos, a todas as vozes. Mas de punir os que querem a volta do “cala boca”, sem deixar de punir os que não sabem exercer a riqueza deste direito fundamental.
Longe os nefastos tempos da censura e censores oficiais que, em nome da “moral e bons costumes”, reprimia a ordem plural brasileira de existir. Uma das primeiras ações de regimes autoritários é o de cessar a liberdade de imprensa, de amarrar os críticos do stablishment e de gerar a sensação de que, existe apenas uma única voz: aquela que se presta à idolatria do dono do poder de plantão e/ou dos “valores tradicionais”. Quem está no poder deve ter uma resiliência maior e resistir à tendência de reprimir os seus críticos. O debate, a contraposição e o exercício de posições contra as maiorias que suportam e ocupam funções de poder são garantias que a liberdade de expressão busca albergar.
Em tempos democráticos, punem-se os discursos nazistas-eugenistas, os que discriminem: povos indígenas, os negros, as mulheres, as pessoas com deficiência, refugiados, as religiões de matriz africana e a população LGBTQIA+. Sim, são todos grupos minorizados. Constituem-se minorias estruturais em acesso não-igualitário de oportunidades ou de histórico de opressão, escárnio, preconceito. Não estão contidos dentro do “espectro padrão” daqueles que sempre exercitaram o poder (político, econômico, religioso, por exemplo). Por essa razão, o sistema jurídico pode dar um olhar protetivo e não condescendente com posições supostamente decorrentes do livre exercício de opinião, que escamoteiam “ismos” de todas as espécies, e se resume em termos de discursos discriminatórios, de apartar, de segregar e de forçosamente invocar uma igualdade.
A igualdade só se estabelece quando há simetria entre as pessoas. Para tanto, premissas devem ser estabelecidas: só se discriminam grupos que historica e faticamente são vulnerabilizados. As mulheres são maioria na população brasileira, mas precisam ter uma lei que puna mais duramente os agressores sendo oportuna e salutar a Lei Maria da Penha. Do mesmo modo, justificam-se políticas públicas de acesso a cargos, funções e vagas a grupos que sempre ficaram às margens dos estratos de comando ou de acesso aos meios de produção. O Brasil propaga em sua condição o princípio fundamental da redução das desigualdades. E fingir que não existem desigualações sociais é o primeiro passo para perpetuar abusos. Jorge Miranda, um respeitado jurista português, diz que os regimes constitucionais devem se preocupar na proteção das minorias, sendo tal, um fato histórico, remontando à Idade Média com o tratamento desferido aos judeus.
Para sermos uma sociedade plural e fraterna, como apregoa nossa Constituição, devemos começar a não relativizar preconceitos e opressões. A mentira e a desinformação, do mesmo modo, não são direitos fundamentais contidos dentro da liberdade de expressão. A responsabilidade de quem engana ao outro, induz pessoas a deixarem de se cuidar, não estão contemplados como protegidos constitucionalmente, porquanto aptos a prejudicar aos demais. Veja o caso dos defensores antivacinas: doenças erradicadas estão ganhando fôlego baseadas em terraplanistas sanitários; na pandemia do novo coronavírus são crescentes os riscos associados aos que se negaram a se vacinar… Como proteger o direito a prejudicar a existência dos outros?
Lembramos ainda que protestos são garantias fundamentais – que decorrem das liberdades públicas de expressão, que, por exemplo, não podem defender pautas antidemocráticas, tais quais os defensores do “fechamento do Congresso” ou da “destituição de todos os Ministros do Supremo Tribunal Federal”. A Constituição garante o pluralismo, a diversidade e a estabilidade democrática. Tentativas golpistas não se compatibilizam com o regime Constitucional, que é assegurado pelo Poder Judiciário (como seu guardião). O esfacelamento do direito às liberdades começa com a interdição do Judiciário. Populistas dos diversos vieses não gostam de poderes independentes, pois querem dominar e fazer tudo ao seu jeito – como se fosse do “jeito do povo”.
Aos que pensem diferentemente, ofertemos nosso respeito e diálogo – sempre com muita responsabilidade. Afastemo-nos de quem não tolera a diversidade e se arvora na posição clássica de segregar os que sempre foram silenciados. Renato Russo escreveu que, para viver a sua vida em paz, era necessário carinho, liberdade e respeito, com um basta na opressão.