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Sobre cães e homens

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Sobre cães e homens
Chico Ferreira é jornalista. Responde também pelo jornalismo da Record TV em Ribeirão Preto.

Esta história começa quando abro o portão de casa e minha cachorrinha escapa sorrateiramente, sem que eu perceba. O que você acha que acontece quando alguém  encontra o animalzinho na calçada e aperta a sua campainha para avisar? 

Antes da resposta é bom dizer que sou do tempo em que cachorro era alimentado com polenta e bofe. Era assim com o Mickey, pastor animadíssimo e espalhafatoso que habitou o quintal de um das casas onde passei parte da infância. A preparação da comida do Mickey era sentida de longe. O panelão que cozinhava fígado e outros miúdos exalava um cheiro medonho e só suaviza quando era misturado à polenta meio mole. E o Mickey comia aquilo com uma vontade que dava medo. Vejam, era um cão de guarda. Estava ali para cuidar da casa, afastar curiosos e mal intencionados.

Brincávamos eventualmente, às vezes era motivo de nossas risadas quando colocava as patas no peito de algum visitante desavisado. Mas não tenho lembrança de um derramamento exagerado de carinho de nossa parte por ele. Nem dele por nós. Não tínhamos a intimidade e a convivência que se vê hoje entre humanos e seus pets. Claro que ficamos muito tristes quando recebemos a notícia de que o Mickey havia sido atropelado durante um período de férias em que ele ficou na casa de um conhecido da família. Enfim, era um cachorro com o conceito que se tinha de cachorro naquela época, anos 1970.

Hoje, temos dois pequenos cães vira-latas em casa. A Bodoca e seu filho Mozart. Adotamos a primeira para que nossos filhos aprendessem a conviver e cuidar de um animalzinho, com tudo o que isso implica: banhos, passeios, alimentação. Você sabe, né? O Mozart é daquele tipinho preto com sobrancelha marrom, um espeto. Feito para a rua.

Conhece e é conhecido por todo o bairro. Mal levanto o portão eletrônico para sair de casa e ele vaza atrás de seus amigos e volta uma hora depois feliz da vida quando encontra um osso ou uma cabeça de peixe, como se não houvesse aquela ração super-balanceada à espera dele.

A Bodoca é branca encardida, parece que tem origens distantes de poodle, mas o resultado é um pouco assustador para quem a conhece com aquele pelo desgrenhado e uma magreza de dar dó, como se não houvesse uma ração super-balanceada à espera da coitadinha. Dissimulada, quer provar a qualquer custo que é uma cachorrinha de colo. 

Se o Mozart é ágil, esperto, mais veloz que alguns carros, a Bodoca é meio bobinha para andar na rua. Mas como já disse é dissimulada. Escapa furtivamente, acho que pelo prazer de enfrentar o proibido numa rotina diária que já não nos assusta. Não vai longe, anda pela calçada e é capaz de ficar horas a fio em frente ao portão até que apareça uma personagem como a senhora do início desta crônica:

Ela aperta o interfone:

  • Pois não?
  • Sua cachorrinha está aqui fora.
  • Ah, obrigado. Ela está acostumada a dar uma voltinha Já vou pegá-la.

Três minutos depois, o interfone novamente:

  • Pois não?
  • Sua cachorrinha. Você não vai pegá-la? Não vou sair daqui enquanto ela não entrar!

Não tem jeito. Já antevejo a publicação nas redes sociais: “Jornalista cruel abandona cãozinho na rua!” e corro para evitar a punição da internet enquanto penso no Mickey. Ai que saudades do Mickey!