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Quanto vale um Nobel?

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Quanto vale um Nobel?

9 milhões de coroas suecas, o de literatura – aproximadamente 3,7 milhões de reais. É esse o valor em dinheiro que ganha o laureado, além da suposta incalculável fortuna editorial que trás ser premiado com o Nobel de literatura. Porém, quantos ganhadores do Nobel não caíram no esquecimento? E quantos outros autores não foram para a tumba esnobados pela academia sueca? Noutras palavras, quão válido é o critério do Nobel, e porque é tão valorizado?

À primeira questão tenho ideias, já à segunda não faço qualquer. Certamente há uma explicação razoável, e provavelmente envolve um fluxo de capital financeiro, político e artístico que simultaneamente se acumula e escoa da Suécia, e acredito também que uma curta pesquisa, no que me levaria talvez uma semana, poderia desvendar, ou ao menos farejar a fonte do valor do prêmio Nobel, mas não para tanto. É um texto sobre crítica de arte e não sobre o capitalismo. Para nós, é o prêmio mais conceituado do mundo e pronto.

Aqui posso me alongar em exemplos positivos e negativos. Os negativos são as faltas cometidas pelo prêmio Nobel ao não laurear um autor cujo entendimento é que definitivamente deveria ter sido. Um exemplo famoso é Philip Roth, que esteve no páreo durante grande parte de sua vida, sempre ficando para o ano que vem, até que morreu. E não há prêmio Nobel póstumo. Esse foi um caso mais ou menos dramático porque aparentemente a academia sueca queria premiar o autor de O Teatro do Sabbath. Mas dá para citar centenas de escritores, e cada um deles vai conseguir justificar dois ou três em que é simplesmente criminoso que a academia sueca não tenha-lhes agraciado com o prêmio máximo da literatura. No meu caso acho que fico com Clarice Lispector e Jorge Luis Borges.

O exemplo positivo seriam aqueles autores a quem a academia premia e que acabam por serem esquecidos. Não sei citar nomes porque, justamente, não os conheço, mas conheço os grandes autores das últimas décadas, como pode fazer qualquer um que frequente um livraria ou uma biblioteca, e é pequena a área de intersecção desses dois conjuntos. São alguns os autores que foram laureados com o Nobel, poucos, mas considerando que desde 1901 foram 116 prêmios, era de se imaginar que um ambiente literário como os citados fosse estar cheio de livros desses escritores, o que não é o caso de maneira alguma.

Os vencedores do prêmio anunciados esse ano, referente também ao ano de 2018, Olga Tokarczuk e Peter Handke, quem são eles? Não para dizer que fora de círculos estritamente acadêmicos ninguém os conhecia, visto que tanto a Rocco quanto a Cia. das Letras editaram livros de Handke em décadas passadas, e a Perspectiva lançou algumas de suas peças em 2015, além de a Tinta Negra ter editado um de Tokarczuk em 2014, Os Vagantes. Certo. Mas qual é, ainda, a real eficiência do Nobel laurear autores assim tão alternativos? Supostamente o prêmio serve também para espalhar a palavra do autor, popularizar seu nome e sua obra a fim de que tenha um reconhecimento popular equivalente a seu patamar crítico. Mas será que funciona?

Essa semana mesmo as livrarias já foram invadidas por edições antigas, de mais de 10 anos atrás, que a Estação Liberdade fizera de Handke – A perda da Imagem ou Através da Sierra de Gredos e Don Juan narrado por ele mesmo, e a Todavia já confirmou que deve sair em novembro uma tradução de Sobre os ossos dos mortos, de Olga Tokarzcuk, lançado em 2009. As editoras não perdem tempo, claro, mas duvido que esse boom momentâneo deve gerar algo mais consistente para o futuro. Não vejo, noutras palavras, a Cia. das Letras comprando os direitos desses dois autores, mas posso estar enganado. A Todavia mesmo é uma dissidência da Cia., então vê-se que o faro estava mais ou menos aguçado.

Acredito que e academia sueca deveria utilizar seus poderes de outra maneira, visto que tem sim, óbvio, uma grande capacidade de alterar as percepções populares e influenciar não só a atividade literária quanto o trabalho crítico e de certificação. Quando quem ganhou o Nobel da Literatura foi Bob Dylan, por exemplo. É esse tipo de coisa que a academia devia buscar fazer, revolucionar o estudo literário. Claro que não dá pra fazer isso todo ano, mas se não for para ir pelo popular logo de uma vez, laureando enfim, por exemplo, Murakami e McEwan, a academia deveria simplesmente jogar merda no ventilador sempre que pudesse, causando ao invés de ‘esse autor merece?’, o debate ‘mas isso é então literatura?’

Porque o que vai vender já vende, e um Nobel no fim das contas não muda muito isso. Com a morte de Toni Morrison esse ano, a primeira mulher negra a ganhar um Nobel, a Cia. das Letras prontamente reeditou seu livro Amada, recentemente chegado às livrarias, em quantidades minúsculas. Isso vai ser para uns poucos leitores e estudiosos terem-no na estante, e para a Editora Schwarcz ter em seu portfólio mais um ganhador do Nobel. Eu duvido que o direito de editoração de um ganhador do Nobel, recém morto, justifique uma edição tão bela e cara. Depois o mercado editorial brasileiro entra em crise e culpa-se as livrarias, como se a falência da Cosac Naify não tivesse dito o suficiente. Enfim.

Algumas editoras até mesmo sublimam da capa a informação de que autor é vencedor do Nobel, caso dos franceses Albert Camus e Jean-Paul Sartre, que na verdade recusou o prêmio. Um outro francês, contemporâneo, a quem teme-se recusar também o Nobel na possibilidade de recebê-lo, é Michel Houellebecq, que diz: ‘Escritores que sobrevivem são escritores que têm discípulos jovens que são eles mesmos bons escritores.’ Talvez seja isso então: você é validado por seus iguais – do ponto do mercado editoral, o que dita o que vai ser vendido, e portanto de um ponto de vista cultural, posto que é também o que vai ser lido pela população, deve ser algo como ‘aquilo que foi lido pelos escritores.’

Porque mais do que escrever, todo escritor gosta de ler, e na maioria das vezes escreve apenas para poder ler. Escrever é árduo, para não dizer perigoso! Uma palavra errada e o texto inteiro pode estar arruinado; é tenso quando produtivo e agonizante quando não. Que diferença para o prazer de ler! Ler um texto bem escrito, com as palavras bem encaixadinhas. Poderia passar o resto dos meus dias lendo, de preferência com acesso ilimitado à fumos e álcool. É isto o que move a literatura, na verdade, o sentimento de que poderia-se viver a ler, mas, porém, não se pode, porque tem que se declarar um amor, esclarecer alguma questão, corrigir alguém, ou simplesmente dizer melhor aquilo que já foi dito antes. Escrever é, afinal, uma atividade profundamente egocêntrica, e publicar, então, é algo praticamente megalomaníaco.

É um ciclo que se retroalimenta através de aspectos qualitativos e, portanto, subjetivos, que geram então um aumento quantitativo e objetivo observável pela posterior consolidação do autor dentro de seu gênero, mesmo que de maneira muito póstuma. Um dos livros mais vendidos no Brasil hoje, por exemplo, Como fazer amigos e influenciar pessoas, de Dale Carnegie, foi escrito em 1936 e é apresentado aqui hoje como uma grande novidade!, e que custa 70 reais!, mais do que praticamente qualquer outro livro que figure entre os mais vendidos, o que deixa evidente que não é que brasileiro não lê, é que brasileiro só lê porcaria, mas na verdade aceita e gosta de pagar uma bagatela num produto chique como um livro bem-acabado.

Esse livro, Como fazer pessoas e influenciar amigos, ops, quer dizer, Como fazer amigos e influenciar pessoas, claro, já era lido há muitas décadas pelas pessoas que se interessavam por oratória, técnicas de negociação, PNL (Programação Neuro-linguística, ou lavagem cerebral, para resumir) e psicologia no geral, muito antes de ser ‘descoberto’ pelo universo coach e atingir a massa consumidora. Ou seja, de fato, a obra passa primeiro pelo crivo dos especialistas para então, no caso do aval, chegar à população. Que os especialistas em lavagem cerebral tenham selecionado essa obra, bom, nenhuma surpresa aí. O fato é que há também especialistas em literatura, e não são leitores, mas sim os escritores, buscando inspiração e um estilo a copiar, e portanto a reproduzir, de forma a ir então preenchendo o mercado editorial, atestando então o que é que foi, afinal, bom.

É essa a lógica do mercado editoral e não há nada que o prêmio Nobel possa fazer. Ser laureado não implica em ser um clássico, tampouco implica sequer em ser um fenômeno de vendas. Contudo acredita-se ainda nesse poder transformador do prêmio Nobel, e por isso mesmo faria bem a academia se utilizasse seu alcance crítico, que é quase total, para discutir as questões últimas da literatura, que são mesmo existenciais – ao invés de tentar fazer o trabalho dos escritores de efetivamente pensar os movimentos literários.

Se essa era a ideia original do prêmio, talvez fosse prudente revê-la, mas o fato é que o trabalho tem-se revelado infrutífero. Claro que o prêmio não tem perdido valor, afinal ainda vale 9 milhões de coroas suecas, mas se for para ter um Nobel da literatura praticamente desconhecido todo ano, qual é o sentido disso? É suposto o cidadão ler todos eles? Ou não seria melhor talvez, como provou-se, atestar a absoluta qualidade do conteúdo literário invariavelmente consumido pelas camadas populares todas, laureando afinal aquilo que cumpre, de fato, a função social da literatura? Chico Buarque, por exemplo, só ganhou o prêmio Camões porque Dylan ganhou o Nobel, abrindo assim a porteira. Deem logo a Woody Allen ou a Alan Moore um Nobel da Literatura então, ou apenas parem de inutilmente tentar ditar o que deve ou não ser popular.