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O vírus e o sonho

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Um casal de velhinhos vive o confinamento na casa que mais parece uma tapera com os últimos recursos que lhes restam. A erva-mate está acabando e após cada rodada de chimarrão a velhinha despeja o conteúdo úmido da cuia numa folha de latão e põe no sol para secar. No dia seguinte a erva ressequida e sem gosto recebe a adição de uma pequena porção da erva nova e a mistura volta a receber a água quente para simular o ritual do mate amargo de todas as manhãs. Para o almoço e o jantar o casal sobrevive com a ajuda de uma vaquinha que restou no quintal e cujo leite se transforma num mingau ralo porque a farinha também está acabando.

“Enquanto a noite não chega” é uma ficção do escritor gaúcho Josué Guimarães (1921-1986) sobre uma cidadezinha abandonada no sul do mundo onde resistem apenas três últimos moradores: Dom Eleutério, de 92 anos, e Dona Conceição, de 86, e o coveiro Teodoro que beira os 70. As motivações para o isolamento dos velhinhos não são explícitas, podem ter sido abandonados pela família ou eles mesmos decidiram nestes pactos que só aos casais muito vividos é dado saber. Talvez o lugarzinho esteja à beira de uma inundação para a instalação de uma nova hidrelétrica e os dois se negam a aceitar o progresso, não se sabe. Já o coveiro argumenta aos idosos que fez uma promessa a ele mesmo de só deixar a cidade após enterrar os últimos moradores. Nesta narrativa que dura o tempo de um dia, a realidade vai aos poucos se misturando a um sonho, enquanto a noite não chega.

O repórter incorrigível enxerga o mundo com os olhos da pergunta. E a pergunta que lhe interessa, às vezes, não é clara e jornalisticamente objetiva. Curioso, quer saber do interlocutor não tanto o que este tem a dizer, mas as tangências da ideia que ele acabou de expressar. E o repórter tem duas questões indiretas que o inquietam: Com o que você está sonhando quando consegue se livrar do duro dia de confinamento na batalha contra o vírus que assola o mundo? E como vai ser o seu Natal de 2020?

O ser humano está acossado e fragilizado na consciência coletiva da possibilidade de sua finitude. A arte que ilustra o noticiário da televisão mostra uma esfera cravejada de ventosas para representar o coronavírus. O nome do agente contaminante pretende remeter à imagem de uma coroa, mas o que se vê mais parece uma nave alienígena bafejando o hálito da peste em nosso rosto. Mas ainda existem os sonhos. São eles os nossos fusíveis a fazer cair a rede quando há sobrecarga insuportável daquilo que chamamos realidade. O condenado num campo de concentração à espera da morte na câmara de gás suportaria o primeiro dia de calvário não fosse o reconforto de algumas horas de sonhos doces? Ou o filho que perde o pai num acidente trágico não mereceria a noite seguinte embalado pela sensação de que sentiu – de fato – o carinho nos cabelos daquele que o gerou?

O velhinho de “Enquanto a noite não chega” toma chimarão logo cedo, ainda na cama, e comenta com a velha companheira o sonho que teve com a filha perdida para um doença: “Ela estava numa sala, vestida toda de branco sentada ao piano e tocando muito baixinho. Eu pedia que ela tocasse mais alto. As pessoas velhas ouvem pouco. E ela me disse: mas, pai, o senhor é tão moço ainda, mal passou dos trinta. Eu queria dizer a ela que não, que eu estou com mais de noventa e ria como se eu tivesse dito uma coisa muito engraçada”.

Há os que mesmo confinados não sonham ou não comentam seus sonhos e encaram a solidão forçada como uma amiga que há tempos não se via. O norte-americano Henry David Thoreau (1817-1862) se impôs um autoisolamento quando tinha apenas 27 anos nos arredores de Concord, Massachussets. Construiu uma cabana às margens do lago Walden e por dois anos se propôs a viver o mais próximo possível da natureza e o mais distante que conseguisse do Estado cobrador de impostos. A experiência se transformou no livro “Walden ou A Vida nos Bosques” somado ao ensaio “A Desobediência Civil”, duas obras que inspiraram movimentos libertários como o de Ghandi na Índia, a onda hippie de retorno à vida natural e até os ecos na geração preocupada com ecologia e sustentabilidade.

Sobre o isolamento e a solidão, Thoreau argumenta: “Que tipo de espaço é o que separa um homem de seus semelhantes e o torna solitário? Descobri que nenhum movimento das pernas pode aproximar muito uma mente da outra. De que preferimos viver perto? Com certeza não há de ser perto de muita gente (…), mas da perene fonte de nossa vida, de onde toda a nossa experiência revelou que se origina , como o salgueiro que se ergue perto da água e lança suas raízes nessa direção”.

Thoreau propõe que o homem não pode estar ou se considerar acima de qualquer ser da natureza. Está tão integrado a ela e por isso defende: “a natureza dos homens não difere muito daquela nos animais”. Em seu isolamento, por vontade própria e não por necessidade como os velhinhos de Josué Guimarães, Thoreau tem alimentação frugal, planta feijões, assa o próprio pão em cinzas no chão e se condena por pescar e comer peixes do lago. Tenta se colocar no mesmo grau de importância de um bicho silvestre ou de uma árvore. E nesse nível coloca o ser humano como dispensável para que a vida prossiga neste planeta.

Hoje, infestada por um vírus, a Terra está a gritar que não precisa de nós, humanos, para seguir sua jornada. Pode muito bem manter sua órbita sem a nossa presença incômoda, suja e agora pestilenta. No máximo nossos cães chorariam nossa ausência nas soleiras abandonadas e os canais de Veneza clarificariam definitivamente. Não mais para olhos humanos, mas talvez para a águia caçadora, o horizonte ficaria livre da fuligem triste e a visibilidade se alargaria por quilometros de nitidez e brilho. Não mais para nós. A noite chega e os velhinhos de Josué Guimaraes embarcam felizes numa carruagem negra que os vem buscar após a morte do coveiro. Os velhinhos estão deixando a cidade abandonada, o isolamento, o confinamento, a distância dos filhos queridos e dos amigos, embarcando pequenamente alegres num sonho macio. E aqui a poesia de Mário Quintana acode dom Eleutério e Dona Conceição: “Calam mais alto, mais fundo as pequenas alegrias…. E o pão dos últimos dias já é um pão do outro mundo”.

O ermitão Thoreau não revela seus sonhos, o que inquieta o repórter. O que sonhou o homem que fez do isolamento a sua profissão de fé? Em dois anos, dormindo sozinho em sua cabana, sonhou com alegres festas familiares? Com uma reunião barulhenta de seus amigos de escola? Ou o contrário? Vivendo em paz com a natureza, lutando braviamente para se autoconvencer de sua pequenez diante da força da natureza, será que suas noites não foram ocupadas em maior parte por pesadelos? Teria acordado suado com o pavor de estar à beira da morte, indefeso e perseguido por um assaltante armado? Chegou a ouvir o disparo do revólver e a bala que não atingiu seu peito porque acordou no momento certo?

O repórter quer saber com o que estamos sonhando no momento em que nossos espaços de isolamento parecem diminuir dia a dia, as paredes se aproximam, a sala fica cada vez menor e o tempo se alonga numa elipse improvável.

E não! O repórter que enxerga o mundo com os olhos da curiosidade não deixou uma questão solta no meio do texto. Você leu de verdade a segunda pergunta que o inquieta. Para além dos seus sonhos, você se imagina abraçando, beijando e apertando a mão dos seus seres mais queridos no Natal de 2020?