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O trânsito dos embriagados (parte 1)

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O noticiário nacional, regional e local que veicula os inúmeros e crescentes acidentes de trânsito sempre enfatiza os envolvidos no uso de álcool ou drogas. A notícia cuida do efeito – o acidente – e da implicação jurídica ao fato consumado. Até pouco tempo atrás era destaque que, para o infrator embriagado, o final não “dava em nada”. Trançando as pernas, com a fala desconexa e sem coordenação motora o embriagado matava, desacatava a autoridade e se via livre.

Mesmo após recente mudança os números desastrosos não diminuíram. As causas, na forma técnica e/ou sociológica, não são apresentadas e discutidas nos noticiários. Todos os dias, centenas de pessoas saem de casa para o trabalho, escola, academia, lazer, padaria, supermercado, para a fila de um emprego ou outro compromisso e não voltam. Uma parte acaba no cemitério e hospitais enquanto a outra vai para a “cadeia” embora lá não fique muito tempo.

Pessoas que nunca se viram, de vidas regulares, que exercem uma atividade, profissão ou estudo, que possuem uma família, amigos, metas e sonhos tem suas vidas alteradas de forma violenta e danosa. Na mente da(s) vítima(s), sua(s) família(s) e de quem assiste uma coisa é certa: é preciso punir rigorosamente o causador da tragédia. 

Esta constatação não é novidade para você, respeitável leitor, mas certamente você percebe e pergunta: por que a aplicação da Lei de Trânsito, em relação aos bêbados e drogados no volante, não faz diminuir os graves e cada vez mais numerosos acidentes dessa polêmica relação social? Resposta: porque a Lei atual – e sua execução e aplicação – reflete uma relação social mal compreendida, mal estudada e mal resolvida por todos.

A antiga e a atual geração escreveram a equação “direção + bebida ou droga = morte, lesão e prisão”. Assim foi feito sem compromisso com o limite do aceitável e sem projetar uma solução em curtíssimo, curto, médio e longo prazo. Bebida e direção é uma parte minada do tabuleiro social onde estão dispostas as peças que representam os interesses mercantis e políticos de alguns e o status, auto-afirmação e responsabilidade social do consumidor-motorista.

Disso resulta que os errados e imprudentes são sempre os outros e que o costume explica tudo porque permite termos à mesa e ingerir bebidas com teor alcoólico. Beber é prazeroso e, por vezes, saudável. Comerciais de diversos formatos de mídia veiculam incessantemente essas “delícias”. Imagens, ambientes, pessoas bonitas e felizes – na maioria muito jovens – nos impingem para o consumo que, em terras tropicais, à todos vence.

O vício, portanto, é conseqüência “natural”. Acidentes cuja causa é uso de álcool e/ou drogas representa em torno de 12 % do total dos acidentes. Sabemos que 70% das mortes e lesões por acidentes de trânsito decorrem do excesso de velocidade, ultrapassagens e manobras proibidas que, no âmbito jurídico, segue tipificada pela imprudência, negligência e/ou imperícia do condutor.

Ainda assim, estigmatizamos o alcoolizado e o embriagado ao ponto de não atacar, com eficiência, as origens que levam as mortes e acidentes de trânsito, de todas as espécies e não só esta que aqui trato. E isso acontece por conta de uma questão muito simples: quando nos deparamos com as tragédias que envolvem o uso de álcool e drogas sentimos um repúdio que faz com que a gravidade do acidente fique em segundo plano.

Ver um co-cidadão morrer ou ser gravemente lesionado por outro co-cidadão que não é um criminoso, no sentido comum da palavra, choca muito porque expõe nossa fragilidade de vítimas e, ao mesmo tempo, de algozes e transgressores em potencial. Não busco justificar os acidentes que envolvem alcoolizados, embriagados e drogados em geral. Ao contrário. Minha militância diária visa expor um erro conceitual gravíssimo em relação ao tema e que nos afasta de um trânsito seguro, sadio e pacífico.

Mas observe bem: no final de uma das inúmeras, seguidas e animadas propagandas de bebida alcoólica surge o mote da campanha de trânsito… “Se beber não dirija”; ato contínuo vem a promoção dessa e outras bebidas em um determinado supermercado, depois o anúncio da próxima partida de futebol de seu time preferido, de uma grande festa em sua cidade com seu(sua) cantor(a) preferido(a).

Depois uma agência de viagens pode levar você, sua família e amigos para a mais linda praia do Brasil onde o hotel (de luxo) oferece uma mesa farta e regada de prazerosa bebida, tudo muito parecido com a propaganda inicial. Entendeu? Esse é o alicerce que sustenta as leis que regulamentam a relação bebida x drogas x direção e que sujeita também as pessoas desapegadas com a ingestão de bebida alcoólica.

Entre a oferta e a demanda existe uma fiscalização insuficiente, falha e que aplica uma punição severa, desproporcional e injusta diante do fato já consumado e onde a autoria e a materialidade já tem os nomes, sobrenomes e CPF dos envolvidos. Não é isso que queremos e muito menos de que necessitamos.

É preciso o empenho pessoal e coletivo, aqui em baixo, para implementação das mudanças, inclusive junto de nossos agentes políticos. Se assim não for continuaremos, cada vez mais, sendo vítimas e/ou algozes em potencial. Sobre a legislação específica para esse tema convido você, caro leitor, a continuar esta leitura na próxima publicação: “O trânsito dos embriagados (parte 2).”