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Luxúria, capítulo final: ‘sexo só é sujo quando não se toma banho’

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Luxúria, capítulo final: ‘sexo só é sujo quando não se toma banho’
Sérgio Kodato (à esq) e Luiz Eblak

Substantivo feminino, a palavra luxúria vem do latim luxus (excesso, extravagância). Pode ser definida como a busca desenfreada pela realização dos desejos sexuais, a total entrega às tentações da carne, sem se importar com consequências morais, riscos à saúde ou ocasião pertinente. O luxuriante coloca o sexo acima de qualquer coisa, numa voracidade sem controle em relação à sua libido, implicando numa adicção sexual e amorosa.

Pode ainda ser sinônimo de sensualidade, libertinagem, concupiscência, promiscuidade, lascívia, libidinagem, sacanagem. Aparece também relacionada à prática sexual de um modo geral, erotismo, prostituição, excitação, prazeres carnais, fruto proibido, pornografia, fantasias sexuais. Fantasia sexual ou fantasia erótica é um desejo latente acerca de um encontro, situação ou ambiente sexual que possa aumentar a sensação de prazer na hora do ato libidinoso.

Provável fantasia erótica de Fausto Fawcett, Kátia Flávia, a “Godiva do Irajá”, fez sucesso estrondoso nos anos 80. “É uma louraça Belzebu / Provocante / Uma louraça Lucifer”. KF é “gostosona / Uma louraça Satanás / Gostosona e provocante / Que só usa calcinhas comestíveis e calcinhas bélicas”. E completa o músico: “calcinha de morango / calcinha geladinha (…) Calcinha de rendinha / ex-miss Febem / Encarnação do mundo cão”.

Ode à prostituição, a canção brasileira associa a personagem principal, a garota de programa do subúrbio carioca KF, a uma mulher da Idade Média britânica, conhecida como Lady Godiva, que foi uma nobre do século XI. Diz a lenda, que surgiu cerca de 200 anos depois, que a Godiva original andou toda nua pelas ruas de Coventry para convencer o marido – duque do Reino de Mercia – a não cobrar mais altos impostos dos moradores do condado. Temos aqui a nudez, portanto, como expressão simbólica de uma demanda feminina. Curiosamente, além de Fawcett, a morenaça Fernandinha Abreu regravou KF (em 2006) e Lady Godiva é personagem de uma música do Velvet Underground (1968) e citada pelo Queen no clássico Don’t Stop Me Now (78).

Prostituição, obviamente, é luxúria para os cânones da Igreja Católica idealizadores dos pecados capitais. Não à toa, celibato e castidade seriam atitudes contrárias à luxúria, entendida como um vício, algo negativo, imoral. Dentro do catolicismo, segundo São Tomás de Aquino, “são os prazeres sexuais os que mais dissolvem a alma do homem. E, assim, considera-se a luxúria referente principalmente aos prazeres sexuais”.

Asmodeu ‘come com os olhos’

Na literatura cristã-católica, mulheres sensuais são comumente associadas à figura do capeta, pois são “tentações da carne”, como KF. Luxúria, em si, é algo demoníaco. A psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco nos ensina que Asmodeu é o satanás da luxúria, o demônio do sexo e do pecado. O pecado da luxúria é o excesso da busca insaciável pelos prazeres carnais, sexualidade extrema, excesso de pulsão que visa contornar o incontornável, para tapar uma insatisfação funcional básica.

De acordo com o psicanalista e escritor Rubem Alves, a luxúria não mora nos genitais, mora nos olhos. David Hume (citado por BACKBURN, 2005) compreendia a luxúria não somente como deleite sensual, mas também como alegria da mente. E já que representam os pontos fracos mais comuns do ser humano ou as falhas espirituais mais sérias, os sete pecados capitais remetem à inevitável questão: qual é nosso pecado capital?

Por mais liberal que se possa ser, a luxúria ainda não causa boa impressão na sociedade. Herança religiosa? Este tipo de sexo parece ser a mosca na sopa, a ovelha negra da família, a prima grosseira e desprezível de íntegros membros da família do amor e da amizade. Vive no lado errado dos trilhos. O amor recebe o aplauso do mundo “certinho”. A luxúria é furtiva, clandestina.

Se cotejarmos os princípios do funcionamento psíquico, vamos verificar que a civilização impõe restrições e exigências aos seres humanos, que, se obedecidas, custam muito caro. E se são descumpridas, o preço também é elevado. É uma forma violenta de represar, restringir o comportamento. Tudo em nome de uma organização, segurança, da “domesticação” do homem para o convívio em sociedade.

Diante desta profusão à la TFP (tradição, família e propriedade), o filósofo britânico Simon Blackburn (2005) questiona se este “mundo certinho” não seria um arranjo equivocado. “A luxúria tem características que a qualificam. Na verdade, isso a suaviza, pois ela não é meramente útil, mas essencial. Nenhum de nós estaria aqui sem ela. Assim, a tarefa a que me impus é limpar um pouco a lama e socorrê-la das denúncias que ecoam de velhos dos desertos, libertá-la dos pálidos e invejosos confessores de Roma e da repulsa do Renascimento, destruir os pilares e os pelourinhos dos puritanos, separá-la de outras coisas que sabemos que a arrastam para baixo e assim elevá-la da categoria do vício à de virtude.”

Godiva pop

Para a historiadora americana Camille Paglia, as prostitutas são donas de sua esfera sexual e representam a “mulher libertada cuja sexualidade não pertence a nenhum homem”. Ora, aqui, impõe-se algum cuidado no sentido de evitar um romantismo apologético igualmente estereotipado e simplista. A prostituição tanto pode ser apresentada como a expressão máxima da exploração e vitimização da mulher como da sua libertação, mas, em qualquer um destes extremos, está uma visão parcial da realidade baseada nos piores e nos melhores casos. Se a vitimização não é intrínseca ao trabalho sexual, também não é verdade que todas as mulheres se sentem libertadas pela prostituição. Seria muito injusto, irresponsável e desonesto ignorar aquelas e aqueles que se sentem vitimizadas/os e oprimidas/os no comércio do sexo.

Nos anos 90, Paglia escandalizou os mundos TFP e modernoso feminista ao escrever um artigo de página inteira no New York Times afirmando que Madonna era “uma das maiores artistas do século XX” e também a “imagem perfeita para as mulheres não se perderem diante do discurso rígido e assexuado (em suas palavras) do feminismo”. Lady Godiva pop, Madonna fazia sucesso desde 1983 com a música Everbody, quando foi “vendida” pela indústria fonográfica como “cantora negra” – o single não tinha sua foto. Depois, apresentou-se em carne e osso e quase sempre em seus clipes foi uma “louraça gosotosona e provocante”.

No vídeo Like a Prayer, a rainha do Pop cometeu a blasfêmia de beijar um santo negro e dançar em frente de cruzes pegando fogo que flertavam com símbolos da Ku Klux Khan. Fosse católica, teria sido excomungada pelo Papa da época, João Paulo II. Não era nem foi. Capa da Playboy – uma revista do século passado “do Demo” – em 1985, afirmou: “o sexo só é sujo quando não se toma banho”. Era uma “louraça Lucifer”, com certeza. Só não andou de cavalo branco pelas noites suburbanas toda nua…

Sádicos políticos

Autora de A Parte Obscura de Nós Mesmos – Uma História dos Perversos, Roudinesco tem outra visão. Coloca a luxúria na perspectiva política e freudiana. Ela nos fala, portanto, de perversão, que “é um fenômeno sexual, político, social, psíquico, trans-histórico, estrutural, presente em todas as sociedades humanas. E se todas as culturas partilham atitudes coerentes – proibição do incesto, delimitação da loucura, designação do monstruoso ou do anormal –, a perversão naturalmente tem seu lugar nessa combinatória. Porém, pelo seu status psíquico, que remete à essência de uma clivagem, ela é igualmente uma necessidade social”.

Na obra, ela cita sádicos, grandes assassinos perversos da história – no primeiro capítulo, fala, por exemplo, de Gilles de Rais, da Idade Média – e grandes artistas. “Ao mesmo tempo a norma assegura à espécie humana a subsistência de seus prazeres e transgressões. Que faríamos sem Sade, Mishima, Jean Genet, Pasolini, Hitchcock e muitos outros, que nos deram as obras mais refinadas possíveis? Que faríamos se não pudéssemos apontar como bodes expiatórios – como Gilles de Rais – isto é, perversos – aqueles que aceitam traduzir em estranhas atitudes as tendências inconfessáveis que nos habitam e que recalcamos?”

Ensina-nos a brilhante psicanalista: “sejam sublimes quando se voltam para a arte, a criação ou a mística, sejam abjetos quando se entregam às suas pulsões assassinas. Os perversos são uma parte de nós mesmos, uma parte de nossa humanidade, pois exibem o que não cessamos de dissimular: nossa própria negatividade, a parte obscura de nós mesmos”.

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REFERÊNCIAS

AQUINO, Santo Tomás de. Sobre o ensino (De magistro) e Os sete pecados capitais. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

BLACKBURN, S. Luxúria. São Paulo: Arx, 2005.

ROUDINESCO, E. A Parte Obscura de Nós Mesmos: uma história dos perversos. Rio de Janeiro: Zahar, 2008