Home Notícias Cotidiano Ira em tempos de cólera: o pecado capital mais que atual

Ira em tempos de cólera: o pecado capital mais que atual

0
Ira em tempos de cólera: o pecado capital mais que atual
Sérgio Kodato (à esq) e Luiz Eblak

No princípio – e muito antes de os pecados se tornarem capitais –, não era o verbo. Sêneca (4 a.C.-65 d.C.) já expressava que o pior da ira é culpar injustamente o autor. “Há uma grande parte dos homens que não se sente irada com os delitos, mas com os delituosos.”

E se a inveja é o único pecado que todo mundo esconde a sete chaves, a ira, ao contrário, fica na cara… Exceção dos caras-de-pau, a raiva fica exposta nas expressões faciais.

Antes mesmo de Sêneca, Aristóteles já dizia que a ira começava com uma irritação. Geralmente sai-se bem quem a controla. E mais do que você saber controlar-se é saber mostrar que você está controlado.

Neste terceiro milênio, após o homem inventar a paz, ainda vivemos uma nova cultura da violência, já que a ira é uma das emoções mais intensas e frequentemente sentidas no cotidiano das relações sociais. Se caracteriza por um intenso sentimento de ódio, raiva, rancor, braveza, geralmente dirigido a uma ou mais pessoas em razão de alguma ofensa, insulto, violência sofrida ou situação injuriante.

Na psicologia, ela se se manifesta através de agressividade física ou verbal, ou violência destrutiva. Sua expressão é associada a diversas psicopatologias, tais como Transtorno de Personalidade Borderline, Transtorno de Personalidade Antissocial, Transtorno Explosivo Intermitente. Em indivíduos saudáveis, a raiva é desencadeada quando uma meta significativa é frustrada por ações impróprias de agentes externos.

Ofensas

Conhecida também como cólera, a ira é o forte desejo de causar mal ao outro, e um dos grandes responsáveis pela maior parte dos conflitos humanos. Em seu livro publicado originalmente em 1872, “A expressão das emoções no homem e nos animais”, Charles Darwin associava a ira à expectativa de sofrer alguma agressão intencional ou ofensa de outra pessoa, ressaltando que esse sentimento pode se transformar em ódio ou outras formas a depender da natureza da relação entre os envolvidos.

A ira surge das zonas primitivas do cérebro que controlam comportamentos sociais, principalmente a amígdala e o hipotálamo. Estas possuem funções de sobrevivência como demarcação de território, protegem a integridade dos indivíduos, enfrentam quem os ameaça. Em situações sociais aversivas como ser advertido pelo chefe, ligações inoportunas de telemarketing, fechadas no trânsito, o córtex pré-frontal tenta inibir nossos impulsos.

Do ponto de vista do comportamento, a ira ou raiva é uma das seis emoções básicas que é inerente a todos os mamíferos. Darwin afirmou ainda que a expressão livre — por meio de sinais externos de uma emoção — a intensifica. Aquele que der vazão a gestos violentos vai aumentar sua ira. Os fatores que podem engatilhar a ira são interferências físicas, como o ato de ser preso, ou imobilizado, não poder se locomover, a frustração, como não obter o objeto que deseja, ser ferido física ou psicologicamente, com insultos ou mesmo ser rejeitado.

A ira pode castigar e revidar, deflagrando o comportamento agressivo. Os autores McGuire e Troisi sugeriram que as pessoas podem apresentar estratégias comportamentais reagindo a diferentes causas que geriram a ira ou raiva como frustração, ameaça e rejeição. Assim embora essas causas sejam gatilhos para eliciar a raiva, o temperamento da pessoa pode mediar a intensidade que a raiva atuará, variando de raiva leve, aborrecimento e aumentando até chegar à fúria.

A indignação e o mau humor são exemplos de raiva passiva. A fúria pode ser traduzida como gestos de agressividade física, como atacar um oponente injuriando-o severamente ou até lhe tirando a vida. A mensagem que a expressão facial raiva emite para o meio social é “afaste-se do meu caminho, pois posso te ferir!” Essa emoção é considerada a mais perigosa, pois a pessoa tomada pela ira pode ferir seus semelhantes fisicamente e/ou psicologicamente.

Ira nos bebês

Em relação à gênese da ira, Sternberg e Campos afirmam que, em bebês, os atos de golpear e se agitar parecem ter a função de remover obstáculos. A “proto-raiva” em bebês surge em diversas ocasiões quando interferem no que estavam fazendo, como retirar a mamadeira. Não existe consenso se esses comportamentos são para ferir a fonte do obstáculo ou simplesmente removê-lo.

A ira percebida como isolada é rara. Geralmente esta é precedida pelo medo — seja de perder o controle, seja da ameaça ou de se perder algo precioso. Esta pode resultar em repulsa ou aversão sobre a ameaça ou mesmo a pessoa pode sentir vergonha ou culpa de si mesma por ter essa emoção.

Outro ponto de vista a ser considerado consiste em liberar ou não a ira. Alguns autores defendem que liberá-la é um bom preventivo contra doenças psicossomáticas. Por outro lado, o preço pode ser alto em relação ao meio social. Ações agressivas e insultos podem prejudicar relacionamentos momentâneos ou mesmo permanentemente. Crianças agressivas são reprovadas por outras crianças e adultos raivosos são vistos como ameaças ao meio social.

Autoconhecimento é uma saída

O autoconhecimento pode auxiliar o indivíduo a tomar consciência das suas emoções. Assim este pode regular e refrear as reações, reavaliando a situação e ter um planejamento para ações posteriores à causa que a eliciou, pois sem essa consciência, fatalmente este terá atitudes que irão trazer arrependimentos posteriormente. É óbvio que essa consciência da ira não garante controle, mas oferece possibilidades de driblar os problemas, usando estratégias como contar até dez, jogar uma água no rosto, etc.

Outra possibilidade de abordagem está na interpretação da ação que ocasionou a ira. Pode-se sentir raiva da ação, mas não da pessoa – o tal alerta de Sêneca. Assim pode-se ajudar essa pessoa, sem feri-la de volta.

Não existe consenso entre os pesquisadores sobre a violência, a exacerbação da raiva, pois muitos consideram ataques verbais, insultos e zombarias como formas de violência e também existem pessoas que agridem fisicamente outros indivíduos e/ou destroem bens como móveis domésticos. As causas desses comportamentos são desconhecidas e levantam-se hipóteses que possam ser influenciadas pela educação — como pais que constantemente agrediram fisicamente a criança, estresse excessivo na infância, fatores genéticos e lesões cerebrais.

Assim pode-se afirmar que existem fatores positivos que dão outro sentido à violência. Ela possibilita ao indivíduo seu desenvolvimento. Tudo depende de como ela é utilizada. A agressividade faz parte do ser humano, do seu dia a dia. Ela é uma energia que nos impulsiona a fazer algo. Quando bem canalizada, é aquela dose de determinação que temos em algumas situações quando queremos atingir determinado objetivo ou nos posicionarmos diante de um fato.

Uma pessoa, por exemplo, para defender seu ponto de vista, precisa demonstrar confiança e determinação na relação com o outro e isso também tem a ver com agressividade. Assim, sendo ela sinônimo de coragem, de determinação, torna-se um aspecto positivo. Apesar de ser um mecanismo de defesa que o ser humano utiliza como conservação da espécie ou para se proteger de algum perigo, a agressividade é rejeitada socialmente. Por isso que há pessoas que nunca expressam tal sentimento.

O que poucos sabem é que, numa catarse, “colocar para fora o que sentimos” faz bem para o corpo e para a mente. Quando uma agressividade é reprimida, esta energia negativa pode transformar-se em doenças, desde as mais simples até a depressão, a automutilação ou o suicídio, para citar algumas. Ou seja, a hostilidade reprimida poderá ser demonstrada no corpo através de algum sintoma, numa demonstração clara da estreita relação corpo e mente.

Na literatura universal, a ira está presente desde o princípio. Conforme o filósofo alemão Peter Sloterdijk, “a ira é a primeira palavra escrita na história das grandes obras clássicas”. O estudioso se refere a Ilíada, de Homero, escritor que deve ter vivido no século VIII a.C..

NOTAS DOS AUTORES

– Este texto tem a colaboração especial do neurocientista Ricardo Kamizaki, professor associado do Departamento de Psicologia do ICH (Instituto de Ciências Humanas), da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora). E-mail: Rkz57@hotmail.com

– REFERÊNCIAS

Charles DARWIN (2000). A expressão das emoções no homem e nos animais. SP, Companhia das Letras

C.R. STERNBERG & J.J CAMPOS (1990). “The development of anger expressions in infancy”.In: N.L. Stein, B. Leventhal & T. Trabasso (eds.) Psychological and Biological approaches to Emotions. Hilldale: Lawrence Erlbaum Associates

M.T. MCGUIRE & A. TROISI (1990). “Anger: An evolutionary view”. In R. Plutchik & H. Kellerman (Eds.), Emotion, psychopathology, and psychotherapy (Vol. 5)

Peter SLOTERDIJK (2012). Ira e o Tempo. Estação Liberdade, 2012

SÊNECA (anos 40 d.C.), Sobre a Ira