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Inveja: o ódio inconfessável contra o outro

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Inveja: o ódio inconfessável contra o outro
Sérgio Kodato (à esq) e Luiz Eblak

“A psicologia substituiu o pecado pelo sintoma; a sociologia passou a tratá-lo como irresponsabilidade coletiva; e o direito, como crime”. A frase é de Zuenir Ventura, autor do livro, “Inveja, o Mal Secreto”, que nos alerta: “A inveja é inconfessável, mas ninguém se livra dela, por mais que se disfarce. É o pecado mais antigo da humanidade”

Quem nunca sentiu uma vontade irresistível de possuir aquilo que é de um outro, associado a uma estranha alegria em ver outra pessoa se dar mal, que atire a primeira pedra. Embora sejam sentimentos considerados indignos e baixos, a cobiça e a inveja são inerentes ao ser humano –ou seja, quase todos sentimos alguma forma de inveja.

Inveja etimologicamente origina-se da palavra latina “invidere“, que significa “não ver”. Dentre seus significados temos: sentimento de cobiça à vista da felicidade ou da superioridade de outrem; sensação ou vontade incontrolável de possuir o que pertence a outra pessoa; o objeto, os bens, as posses e habilidades de outrem acabam sendo alvos do invejoso.

Detalhe importante: o invejoso não quer apenas o que o outro tem, ele quer também que seu próximo se dê mal.

A inveja não se configura como o “pecado número 1”, nos cânones da Igreja Católica, mas poderia sê-lo. Alguns religiosos postulam a tese de que ela estaria “no nascedouro da criação, na própria queda de Lúcifer do Paraíso, podendo este ser considerado o personagem fundador da inveja”. Inveja do Todo Poderoso?

Essa cobiça pecaminosa, como um fenômeno psicológico, tem sua origem no processo de intensificação do ódio, que inicialmente é voltado contra o próprio sujeito invejoso, para em seguida ser direcionado para o objeto da inveja. O papel do ódio é o de forçar o distanciamento de contato do invejoso com seu próprio ser. Isso porque essa situação poderia levar ao esvaziamento do self, uma despersonalização, caso não surgisse a inveja como medida compensatória a esse angustiante esvaziamento.

Considerada uma disposição de espírito, a inveja foi definida por Spinoza (1632-77), como “o ódio que afeta o homem, de tal modo que, ele se entristece com a felicidade de outrem e, ao contrário, se alegra com o mal de outrem”. Geralmente ela diz respeito ao desejo de possuir ou gozar o que é possuído ou gozado por outrem. O invejoso sofre por aquilo que lhe falta, ainda quando se alegra com o sofrimento alheio.

O sentimento de inveja é despertado quando o indivíduo se depara com uma força contrária à sua adaptação existencial; essa força pode estar intimamente relacionada com os ataques de autocrítica e auto exigência exagerados. Nesse caso, a inveja tem por substrato o ódio consciente ou inconsciente do indivíduo voltado contra si próprio por causa de suas lacunas, falhas ou faltas que se tornam insuportáveis, na comparação com outros indivíduos. Antes de destruir os outros, detentores das boas qualidades invejadas, o invejoso dirige a si próprio a acusação de insuficiência ou deficiência dessas qualidades.

Por isso, ele fica em lugar denegrido, imprestável e degradante, comparando-se com quem detém a posição ou a condição privilegiada. Um aspecto importante a ser observado se refere aos sentimentos de autodesprezo, humilhação e inferioridade, que surgem em consequência dos ataques. O sujeito costuma alimentar fantasias de inutilidade e de incapacidade justamente a propósito daquilo que sente lhe faltar. Trata-se de uma situação propícia ao distanciamento de contato com o seu ser interior porque em vez de se aninhar em seu ser é a repulsa que predomina, vindo a afetar os vínculos do invejoso consigo mesmo. Essa é uma situação típica de ataque aos vínculos, que resulta em estado lacunar, de vazio existencial.

A inveja não está relacionada à decepção ou frustração. Ela é parte da vida psíquica do ser e se fundamenta no ódio consciente ou inconsciente por causa de suas faltas ou falhas. A mente de uma pessoa invejosa está sempre nutrida de pensamentos de inutilidade e incapacidade de conseguir aquilo que lhe falta. Essa situação gera o distanciamento do contato interior, pois em vez de dar valor àquilo que é ou que possui, no íntimo do invejoso predominam o ódio e a repulsa.

Essas situações intensas de cobiça e inveja comprometem o equilíbrio emocional e abalam as relações interpessoais do invejoso. Admitir que existem dentro de si sentimentos negativos facilita o rompimento com as influências compulsivas e permite se abrir ao caminho do crescimento e saúde mental. Assim sendo, o indivíduo pode passar a vida na auto depreciação ou, ao ver as conquistas alheias, se encher de coragem e vigor para ir em busca do seu objeto de desejo.

Leviatã, o capeta da inveja

Como tratamos no texto número 2, a psicanalista francesa Elizabeth Roudinesco nos lembra que cada pecado capital tem um líder diabólico como “padrinho”. No caso da inveja, é Leviatã. Esse é um dos capetas mais poderosos, responsável por fazer os homens tornarem-se hereges. Habita o fundo do mar, é mencionado na Bíblia e tem várias aparências: dragão marinho, serpente, baleia e até crocodilo. Os teólogos afirmam que ele promove inveja e leva à obsessão pelos bens materiais.

De acordo com Thomas Hobbes (1588-1679), para quem “o homem é o lobo do homem”, ele é mau por natureza (egoísta) e viver em sociedade não significa que essa natureza se modificou. Se não houver um poder maior que, pelo medo, imponha o cumprimento do pacto, o homem não respeitará o prometido. Justamente a partir daqui é que podemos compreender a obra mais importante do filósofo, o “Leviatã”.

Retirado na mitologia fenícia, o Leviatã, figura que também é relatada no antigo testamento, no livro de Jó, é um monstro gigantesco, uma espécie de crocodilo, que vivia em um lago e tinha como missão defender os peixes mais fracos dos peixes mais fortes. Dessa mesma forma age o Estado hobbesiano: defende a vida de todos, não permitindo que uns atentem contra a vida dos outros. Mas para garantir o respeito ao pactuado, o Estado deve impor, pelo medo, tal obediência. Por isso ele deve ser forte, cruel e violento.

Diante da atual situação do nosso país, não temos muita inveja do Estado preconizado por Hobbes. Afinal o que o Brasil menos precisa é de violência. E talvez seja muito necessário tratar a inveja nacional no divã.