Homo Deus! Ou a perda da liberdade humana

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A ideia central deste livro é de uma ideia simplista, contudo assombrosa: a natureza da humanidade se transformará neste século XXI porque a inteligência se desvinculará da consciência. O livro de Yuval Noah Harari, autor israelense do best-seller Sapiens: Uma Breve História da Humanidade, afirma que não construiremos tão cedo máquinas que tenham sentimentos como nós, algo que o cinema é experto em demonstrar, e explica que esses sentimentos só podem vir da consciência. Se vermos um filme como ELA, conforte-se em saber que aquilo não vai acontecer, pois os robôs não se apaixonarão. Só que o autor não afirma que a premissa contrária possa ser verdadeira: humanos podem apaixonar-se por robôs.  

Recordo bem de um episódio do seriado humorístico The Big Bang Theory, onde a personagem Raj dialoga tanto com o aplicativo Siri, da Apple, que acaba estabelecendo um relacionamento, digamos, amoroso para com a máquina. Ela parece não corresponder muito, mas ele, sim, está caído de paixão pela voz que sai do aplicativo e parece conhecer tudo o que ele gosta. Obrigado, algoritmos! (É uma piada, ok?!)

Porém, o autor demonstra que já construímos máquinas com poderosos processadores capazes de manipular dados que nem toda a humanidade junta conseguiria fazer no mesmo tempo. Observemos o Google. Um colosso de proporções globais que sabe tudo o que procuramos, o que queremos, o que pensamos, nossos desejos mais recônditos. E acreditam alguns, como os autores do documentário O dilema das redes, presente no Netflix, que colossos globais assim manipulam as mentes e bolsos de bilhões de pessoas. Isso tem o potencial de mudar o que significa ser humano.

O livro anterior de Yuval Noah Harari, o já citado Sapiens, expôs os últimos 75.000 anos da história humana para nos lembrar que não há nada de especial ou essencial sobre quem somos. Somos um acidente. O Homo sapiens é apenas uma forma possível de ser humano, uma contingência evolutiva como todas as outras criaturas do planeta. Esse livro terminava com a ideia de que a história do homo sapiens poderia estar terminando. Estamos no auge de nosso poder, mas também podemos ter atingido seu limite. Homo Deus aproveita esse pensamento para explicar como nossa capacidade incomparável de controlar o mundo ao nosso redor está nos transformando em algo novo.

A evidência de nosso poder está em toda parte: não apenas conquistamos a natureza, mas também começamos a derrotar os piores inimigos da humanidade. A guerra está cada vez mais obsoleta; a fome é rara; a doença está em recuo em todo o mundo. Alcançamos esses triunfos construindo redes cada vez mais complexas que tratam os seres humanos como unidades de informação. Aqui, nada difere do filme Matrix, onde éramos considerados fonte de energia. Muda a forma de ver, mas não se muda que passamos a ter utilidade. 

 A ciência evolucionária nos ensina que, em certo sentido, não somos nada além de máquinas de processamento de dados: nós também somos algoritmos. Ao manipular os dados, podemos exercer domínio sobre nosso destino. O problema é que outros algoritmos – aqueles que construímos – podem fazer isso com muito mais eficiência do que nós. Isso é o que Harari quer dizer com o ato de desacoplar a inteligência da consciência. O projeto de modernidade foi construído com base na ideia de que os seres humanos individuais são a fonte de significado e também de poder. Somos nós que decidimos o que nos acontece: como eleitores, como consumidores, como amantes. Mas isso não é mais verdade. Somos o que dá poder às redes.

Estamos apenas no início desse processo de transformação baseada em dados e Harari diz que há pouco que podemos fazer para pará-lo. Homo Deus é um livro do “fim da história”, mas não no sentido bruto que ele acredita que as coisas pararam. Pelo contrário: as coisas estão se movendo tão rápido que é impossível imaginar o que o futuro reserva. Em 1800, era possível pensar significativamente sobre como seria o mundo de 1900 e como poderíamos nos encaixar. Isso é história: uma sequência de eventos em que os seres humanos desempenham o papel principal. Mas o mundo de 2100 é atualmente quase inimaginável. Não temos ideia de onde nos encaixaremos, se é que vamos chegar lá. Podemos ter construído um mundo que não tem lugar para nós.

Considerando o quão alarmante é esse pensamento, e visto que ainda não chegamos lá, por que não podemos fazer mais para impedir que isso aconteça? Harari acha que a crença moderna de que os indivíduos estão no comando de seu destino nunca foi muito mais do que um ato de fé. O poder real sempre residiu nas redes. Os seres humanos individuais são criaturas relativamente impotentes, não sendo páreo para leões ou ursos. É o que eles podem fazer como grupos que lhes permitiu dominar o planeta. Esses agrupamentos – corporações, religiões, estados – agora fazem parte de uma vasta rede de fluxos de informações interconectados. Encontrar pontos de resistência, onde unidades menores possam enfrentar as ondas de informação que se espalham pelo globo está se tornando cada vez mais difícil.

Harari tem o cuidado de não prever quando essas visões bizarras acontecerão. Afinal, o futuro é desconhecido. Ele reserva suas opiniões mais fortes sobre o que tudo isso deve significar para o estado atual das relações entre humanos e animais. Se a inteligência e a consciência estão se separando, isso coloca a maioria dos seres humanos na mesma situação que os outros animais: capazes de sofrer nas mãos dos possuidores de inteligência superior.

Harari não parece muito preocupado com a perspectiva de robôs nos tratando como tratamos moscas, com violenta indiferença. Em vez disso, ele quer que pensemos sobre como estamos tratando os animais em nossos vastos sistemas agrícolas industrializados. Inquestionavelmente, os porcos sofrem quando vivem em condições apertadas ou separados à força de seus filhotes. Se acharmos que esse sofrimento não conta porque não está aliado a uma inteligência superior, então estamos construindo uma vara disciplinadora para espancar nossas próprias costas. Em breve, segundo o autor, o mesmo poderá acontecer conosco. E qual será o preço do nosso sofrimento então?

Este é um livro muito inteligente, cheio de percepções afiadas e sagacidade mordaz. Mas, como Harari provavelmente seria o primeiro a admitir, ele é inteligente apenas para os padrões humanos, que não são nada especiais. Pelos padrões das máquinas mais inteligentes, é confuso e especulativo. Os conjuntos de dados são bastante limitados. Seu verdadeiro poder vem da sensação de uma consciência distinta por trás dele. Harari se preocupa com o destino dos animais em um mundo humano, mas escreve sobre as perspectivas do homo sapiens em um mundo movido a dados com grande despreocupação. O Homo Deus dá a sensação de estarmos à beira de um penhasco após uma longa e árdua jornada. A jornada não parece mais tão importante. Estamos prestes a entrar no ar.