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Gestão de conflitos

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Gestão de conflitos
Mario Pascarelli

O município é, sem dúvida, o lugar onde a relação entre povo e governo é cotidiana e permanente; onde as reivindicações sociais para que se atendam suas demandas e necessidades se tornam realidade; onde o representante popular ou autoridade local vive mais nítida e intensamente a responsabilidade de atender de forma eficaz as reivindicações sociais, já que se não for assim sofrerá diretamente a irritação e o descontentamento social pela ausência de respostas.

Diante dos recursos cada vez menores para fazer frente à demanda social, tem que usar toda sua imaginação, criatividade e capacidade política para responder e realizar uma verdadeira ação de governo e não ser um simples administrador que, diante das limitações de recursos econômicos e materiais, encontra-se sem alternativa.

Caso se considere que o âmbito municipal é, por natureza, arena de conflitos e que a distribuição do poder nas organizações nunca é estável, no sentido de que a diversidade existente gera tensões constantes, requer-se governantes locais que, além de bons administradores, sejam bons políticos; ou seja, que contem com capacidade de conciliação e negociação em condições de respeito, reconhecimento e tolerância dos diversos atores sociais, que encontrem mecanismos e formas de desenvolvimento e democratização, embora com poucos recursos econômicos.

Por esse motivo, o tipo de informação e formação que se dirigir às autoridades municipais deverá conter, além de tecnologias e procedimentos práticos e viáveis para a solução dos assuntos municipais, elementos que contribuam para estimular condutas e métodos que sejam coadjuvantes na participação social, no trabalho em equipe e na democratização municipal, já que a principal tarefa dos governos consiste em saber tomar decisões e administrar conflitos.

Os tempos modernos em que vivemos obrigam os representantes populares a elevar suas capacidades e o nível de competência; as sociedades são cada vez mais heterogêneas, o nível de demandas sociais é maior em quantidade e qualidade. O bom governo é aquele que atende tanto as demandas cidadãs de bens e serviços como aquele que abre espaços de expressão e ação cidadã.

É importante que os vereadores e prefeitos saibam elaborar diagnósticos, fazer planos de trabalho, revisar orçamentos; mas é igualmente importante que os governantes locais saibam como se comunicar com as pessoas, identificar necessidades, administrar conflitos, conduzir uma assembléia e uma negociação, ou seja, que os representantes políticos saibam ser bons governantes.

Em virtude do exposto acima, são necessários materiais de capacitação que contribuam para a formação de atitudes e métodos democráticos, baseados numa ética do governante honesto, responsável, respeitoso, tolerante, flexível e bom servidor público, de um governante convencido de que é possível mandar obedecendo e de que a eficácia, eficiência e participação cidadã são elementos que combinam perfeitamente.

Uma série de fatores têm estado presentes na vida política nacional para considerar atualmente o âmbito municipal como um espaço privilegiado de democratização e facilitador de condições para o desenvolvimento regional.

A crescente concorrência política pelos governos locais obriga, hoje, aos que desempenham cargos de serviço público neste nível a buscarem consenso entre os diversos atores sociais para impulsionar planos e políticas, a potencializarem suas capacidades para realizarem um bom exercício de governo, e a alcançarem condições de convivência social e política que lhes permitam impulsionar as tarefas governamentais que o desenvolvimento municipal requer. A vigilância cidadã sobre os resultados da gestão é cada vez maior e espera uma melhoria real em suas condições de vida.

É por isso que as autoridades municipais precisam gerar processos de concertação e participação cada vez mais amplos. Para realizar esta tarefa, os vereadores e funcionários públicos precisam promover e favorecer as dinâmicas de grupos, desde a formação e consolidação de equipes de trabalho, o fortalecimento da câmara municipal como instância colegiada, e a articulação com os diferentes setores da população e com outros governos. Seu papel como servidores públicos coloca-os no centro desta grande quantidade de relações que devem ser atendidas adequadamente para se atingir os objetivos que o governo estabeleceu para si.

Esta interação cotidiana com tantos e tão diversos atores se transforma, em muitas ocasiões, em fonte de tensões e conflitos ao confrontar os diversos interesses sociais e políticos.

“A regra de ouro da conduta é a tolerância mútua, porque nunca pensamos todos da mesma forma e sempre veremos só uma parte da verdade sob diferentes ângulos.”(Ghandi)

O exercício de governo é fundamentalmente uma tarefa de serviço que tem como finalidade satisfazer as necessidades da população. Para cumprir com este propósito, o governo conta com uma série de faculdades e competências que colocam sob sua própria responsabilidade e em função do interesse local atribuições e recursos públicos limitados, cuja utilização e distribuição se resolve através de uma disputa entre as necessidades e interesses dos diversos grupos sociais.

É por isso que a tarefa de governar tem como uma de suas características fundamentais uma constante relação com situações de conflito que orientam e dinamizam sua ação.

Entretanto, apesar do conflito ser uma das formas de relação política e social cotidiana no âmbito público, não temos uma cultura e um treinamento específico para administrar adequadamente estas situações e fazer do conflito algo positivo e produtivo que nos permita construir novas soluções para a problemática municipal.

Porém, as autoridades municipais enfrentam relações conflitantes em diversos âmbitos de seu trabalho, como aquelas que ocorrem entre os integrantes da máquina governamental as que são geradas com outros órgãos de governo, e nas relações com a comunidade municipal e entre grupos dela.

  1. Os conflitos dentro do governo municipal

O governo municipal tem como propósito fundamental atender às necessidades estratégicas e práticas da sociedade. Portanto, seu fortalecimento institucional é uma condição necessária para desenvolver uma crescente capacidade de responder a esse desafio. Os conflitos que ocorrem neste campo, se forem administrados adequadamente, podem ser um fator dinamizador na busca de uma nova institucionalidade mais democrática e eficiente, senão podem se transformar num sério obstáculo para o cumprimento de seus fins. Como exemplo, citamos alguns conflitos típicos entre diferentes atores da máquina governamental.

a) Entre autoridades políticas e autoridades administrativas

Onde a disputa geralmente se centraliza num conflito de interesses de poder e de direitos sobre a delimitação de faculdades e competências, de capacidades de decisão, diferentes perspectivas na resolução de problemas, etc. Ou seja, a base do conflito é estrutural, enquanto que esta distribuição de atribuições é dada pelo arcabouço jurídico municipal.

É comum se ver, por exemplo, que os diretores de áreas administrativas (obras públicas, planejamento, segurança) atingem um maior poder de decisão a partir de suas atribuições executivas que as autoridades eleitas não têm de maneira individual (prefeito e vereadores). Esta situação gera, no final, situações conflitantes na interação dentro da equipe de governo entre o prefeito municipal e membros da câmara, entre um vereador e o diretor de área que corresponde a sua comissão, entre a visão política e a execução administrativa de um projeto, etc.

Esta problemática pode ter um impacto negativo no funcionamento de governo ao provocar duplicidade de funções, a exclusão de alguns, uma prática de competir pelos mesmos espaços, decisões contraditórias, a inoperância das câmaras de vereadores, a evolução para posições irreconciliáveis, etc.

b) Entre grupos com diferentes interesses e visões políticas dentro da equipe de governo

Quando diferentes estratégias e capacidades de decisão entram em um conflito de valores e de poder para orientar a atuação governamental, não apenas a partir da definição dos delineamentos da gestão, mas também dos espaços de incidência: cargos públicos, instâncias de decisão, administração dos recursos, representatividade, etc.

Um dos traços mais negativos da cultura política dominante é a resistência à convivência política em espaços plurais onde a diversidade, a dissidência, a relação entre maiorias e minorias ocorram naturalmente em uma busca diária pela construção de consensos para enfrentar os desafios do governo municipal. É por isso que as diferenças de visão tendem a se polarizar e a levar a extremos de confrontação que debilitam de maneira muito importante a capacidade de governo, enquanto que tomam uma grande quantidade de tempo e energia para a conflitualidade interna gerando imobilidade ou autoritarismo diante da capacidade de encontrar acordos comuns para orientar a ação governamental.

Estas relações se expressam geralmente entre representantes de diferentes partidos ou grupos políticos, ou entre correntes de um mesmo partido ou com grupos de interesse colocados na máquina de governo, etc.

c) Entre os níveis dirigentes e os níveis operacionais

Devido ao não cumprimento de parâmetros de eficiência, responsabilidade, atitudes, capacidades dos empregados administrativos para a execução das políticas e as ações propostas pelo governo. Surge, então, como um conflito de direitos trabalhistas, bem como de valores com relação à possibilidade de compartilhar uma identidade e um projeto de governo.

Por exemplo, uma equipe de governo que, ao iniciar sua gestão, propôs uma mudança de relação com a cidadania imprimindo uma atitude de serviço, o combate à corrupção, uma resposta eficiente à demanda social, precisa romper inércias de trabalho e de atitude que se traduzam em profundas mudanças institucionais que geram tensões e ameaças ao desempenho tradicional do pessoal administrativo. Se estes processos de transformação não forem considerados adequadamente, podem originar uma grande quantidade de conflitos interpessoais, organizacionais e legais.

  1. Os conflitos do governo em sua relação com a população

Este é o terreno mais importante das relações do governo municipal, no qual o conflito administrado de forma produtiva pode se transformar num motor da democratização e do impulso para o desenvolvimento municipal. Neste campo, os tipos e modalidades do conflito são muito mais complexos e diversos; para exemplificá-lo propusemos alguns casos de relação conflitante entre a autoridade governamental e setores sociais:

a) Com setores sociais que se organizam para fazer uma exigência ao governo municipal

Se partirmos do reconhecimento de que um conflito social se dá quando se conscientiza em ambas as partes a existência de metas incompatíveis entre si, é necessário, em primeira instância, revisar se essa é a situação real. Nem todas as manifestações de pressão da demanda social caem numa relação de conflito com o governo municipal, visto que, em muitos casos, a exigência cidadã, além de suas formas organizativas e de expressão, é compatível com os interesses e possibilidade do governo.

As práticas políticas tradicionais no país nos têm feito acreditar que toda forma de mobilização social autônoma se traduz automaticamente numa relação de conflito com a autoridade. Ao mesmo tempo, estamos diante de uma sociedade cada vez mais informada e participativa, disposta a exercer seus direitos plenamente.

Se um governo municipal decidiu fortalecer a vida democrática de sua comunidade, encontrará, nesta atividade cidadã, novas possibilidades de comunicação e relação com ela.

Contudo, é comum que, devido à ausência de canais de interlocução e participação, sejam geradas situações conflitantes nesta interação, ou que efetivamente existam bases objetivas de conflito quando se almejam metas incompatíveis entre o governo e um determinado grupo social.

Os conflitos que ocorrem nesta relação podem ser de vários tipos: de interesses, por exemplo, numa disputa por recursos, de poder numa luta por espaços de decisão ou de legitimação de ações governamentais, de valores em torno da honestidade e credibilidade dos servidores públicos, de opinião sobre políticas de governo, de direito em torno da regulamentação local, etc.

De acordo com a informatização sistematizada sobre mobilização cidadã a respeito da gestão municipal, os motivos mais freqüentes desta se referem a

demandas de obras e serviços (dotação e tarifas), lutas pós-eleitorais e malversação de recursos públicos.

b) Os conflitos entre setores sociais do município

Neste caso, nos encontramos diante de grupos que representam interesses distintos em relação a um mesmo assunto ou problema, que geram relações de conflito ao sustentar diferentes propostas sobre como resolvê-los.

Falamos aqui das relações que se dão, por exemplo, entre vendedores ambulantes e comerciantes estabelecidos, entre transportadores e usuários do serviço, entre residentes de uma área e proprietários de estabelecimentos comerciais, entre solicitantes de terra e proprietários de terrenos baldios, entre grupos que competem pela representação de determinados setores sociais, entre uma entidade oficial e seus trabalhadores, etc.

Neste tipo de situações, as autoridades municipais desempenham um papel diferente diante do conflito: sua intervenção pode ser mediadora, arbitral ou facilitadora, visto que a solução para esses problemas e interesses contraditórios não está em suas mãos. Entretanto, é importante, e em muitos casos necessária, sua participação para criar condições de diálogo e negociação que permitam se chegar a acordos entre as partes e restabelecer a harmonia social.

O governo municipal não pode ficar indiferente diante dos problemas sociais que ocorrem em sua comunidade. É preciso ter sensibilidade, informação e conhecimento da realidade onde estará atuando. Sua legitimidade foi conquistada não apenas por um triunfo eleitoral, mas por sua capacidade de cumprir com os objetivos de governo e de buscar a convivência política social no município.

c) Os conflitos dos cidadãos com o governo municipal

A administração pública tem tendido fortemente para o burocratismo e a corrupção no que se refere ao atendimento cidadão. Isto se tornou uma fonte de incontáveis conflitos entre servidores públicos e cidadãos.

A tramitação de alvarás e licenças, o pagamento de impostos, solicitações de informações e audiência, a orientação e apoio para gestões administrativas, a relação com os funcionários públicos, com a polícia, com as autoridades, tornam-se verdadeiros calvários para os cidadãos que precisam destes serviços e de uma comunicação transparente e fluída.

Os efeitos desta situação são extremamente negativos por levarem a sentimentos de desconfiança e suspeita que inibem a cooperação e geram o distanciamento da sociedade diante das ações governamentais.

d) Os conflitos entre o governo e os partidos políticos

O governo municipal é objeto de disputa entre os diferentes partidos políticos que atuam no município, pois por sua natureza aspiram ao poder municipal ou a incidirem nos recursos e decisões de sua gestão. É por isso que, no campo destas relações, são gerados diversos conflitos.

É o caso, por exemplo, da relação entre o governo municipal e o partido pelo qual ele foi eleito. É comum que a instituição política exija do governo um certo tratamento especial ou participação direta na conformação da administração municipal. Sem dúvida, os elementos que se jogam nesta interação são o poder, recursos, representação, etc., sobre a base de uma percepção do partido no sentido de considerar que deveria ter uma posição privilegiada nesta interlocução, isso frente a um governo que pretende um exercício do poder mais plural e respeitando a diversidade. É frequente que esta confrontação de necessidades e interesses acabe levando a situações de conflito, tanto dentro quanto fora do próprio governo.

Assim, também podemos localizar elementos conflitantes na relação entre partidos de oposição e o governo municipal, com relação a visões e projetos diferentes para o município, como parte de um processo para se legitimar como opção de poder local. É comum que, nestas relações, ocorram fortes tensões entre os partidos porque cada parte mobiliza seus próprios recursos com a finalidade de ganhar respaldo e aceitação social. A esta luta de poder, natural num sistema de partidos, teríamos que acrescentar o fato de que não temos uma cultura de pluralidade e diálogo, com mecanismos e métodos adequados que facilitem o intercâmbio e o entendimento entre alternativas políticas distintas.

  1. Os conflitos com outros âmbitos de governo

O governo municipal mantém uma relação intensa com outras ordens de governo para poder desenvolver sua gestão. Ou seja, a necessidade de atrair recursos para o município, de implementar programas federais e estaduais, de concertar ações e acordar planos, de coordenar projetos com outros municípios, de incidir em decisões de caráter regional ou nacional que lhe afetam, etc., tudo isso implica num acúmulo de interações no campo das relações intergovernamentais que, em muitas ocasiões, tornam-se fontes de conflito para a autoridade municipal.

Como mencionamos, uma causa frequente de conflitos ocorre na disputa por recursos limitados e, por ser o município a ordem de governo mais próxima da cidadania e, por esse motivo, o receptor primeiro da demanda social, dedica uma grande quantidade de tempo e esforço para a gestão de recursos públicos que lhe permitam responder a essas exigências. Neste campo de sua ação governamental são geradas situações de conflito com as entidades estaduais e federais que administram programas e financiamentos para os municípios em torno dos critérios, montantes, oportunidades e canais para a distribuição dos recursos.

Outro problema que provocou vários conflitos entre os municípios e outros âmbitos de governo foi a falta de precisão na distribuição de funções e competências entre a federação, os governos estaduais e os municipais, já que se apresentam duplicidades na prestação de serviços, a realização de obra pública, etc.

Sem pretender abranger a totalidade das relações conflitantes que enfrenta um governo municipal, apresentamos um panorama daquelas que são especialmente recorrentes e que exemplificam a complexidade da realidade municipal e a necessidade de fortalecer as capacidades de governantes e dirigentes sociais para resolver adequada e produtivamente estes e outros conflitos.