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Folhar e florir como pessoas

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Folhar e florir como pessoas
João Augusto é jornalista e poeta

Escutei que alguns lugares se movem dentro de nós. Vou reinventando uma parte de mim enquanto escrevo. Como as folhas secas das árvores. Para que o que tenha que passar, passe. E novas folhas umedeçam nossa secura de estrelas no peito. Para guardar somente o que esplende em cada instante, do que desejo ao meu lado, quando for o tempo de abraçar a eternidade. Guardar as boas lembranças que posso acender em dias escuros. Ser a tarde que se deita com o próprio sonho.

As árvores e as flores sabem o que é preciso fazer com aquilo que já se esgotou, envelheceu e, se por um tempo soube ser vida, ficar com o que lhes deu beleza, força, alegria. A inteligência que nos recusamos a realizar em nossos dias. Deixar partir tudo que precisa partir, o que emudece nossos passos, nossos lábios. Para que novos lugares nasçam dentro de nós.

Como humanos, adormecemos entre o verão e o outono, quando o sol, sozinho, já não pode iluminar a essência das coisas que pedem companhia. Atravessar. Ser nossa própria passagem. Uma porta para deixar para trás o que nos impede de seguir, de folhar e florir como pessoas.

A mesma terra sob nossos pés. Sob o caule mais fino ou mais robusto. A terra que respira pela água da chuva, pelo ar roçando seu rosto deitado de olhos apontados para o céu. E a terra, depois então de lavar o seu destino, renova seu ventre de criar e amar tudo que esteja sobre ela. Eu e você.

Observo a calçada de minha casa repleta de folhas. E, mesmo em certas perdas, encontramos beleza. Perder o medo de deixar uma ausência aberta, para ser preenchida por uma nova palavra, por um par de nuvens que nos ensine a entender que nem tudo que vem do chão precisa ficar no mesmo lugar. Em tantos espaços, laços de afeto, lavar o destino dos nossos sentimentos, lavar e estender ao sol as palavras que desejam novos nomes, uma nova música. Trocar os velhos hábitos, as velhas respostas para as mesmas perguntas. Mudar as perguntas. Encontrar. Nada que esteja tão longe. A vida é esta diante de seus olhos. Mas são suas percepções, suas folhas e flores escritas com letras antigas, já sem fôlego, atingidas de dores. Lavar as dores com perdão. E só levar nos bolsos da alma o que a mim e a você faz bem guardar. Reencontrar.

Nós, humanos. Tão cheios de vaidade e conhecimento, tão empalidecidos de maquiagens vencidas. Nossos galhos pesados de angústias, incertezas. Limpar os pés das memórias inúteis na soleira da manhã aberta de pássaros. Em algum momento, ser as nossas próprias asas. Galhos leves, manhãs macias. Voar no próprio abraço.

Escolho, então, a palavra traducere, do latim: “conduzir, pela mão, a algum lugar”. Esses tantos lugares. Todos esperando que nossas folhas velhas toquem a infinita natureza de transformar, como as estações do ano, transformar-se. Entre o frio e o quente, entre sementes frescas e pétalas que virão.

Correr pelas veias vermelhas de sonhos, tão azuis como a voz da infância, de voltar a pintar o mar que um dia imaginamos. Tocar a mão de uma pessoa e saber que lá, distante de ser uma engrenagem fixa no peito, estará pleno o nosso coração.

Não somos tão óbvios. Nem somos tão fantásticos. Mas é nesse caminho, entre um e outro, que encontramos esse alguém que nos faz falta, que nos faz bem. Nossas vontades, ainda tímidas, nossa intuição mais bonita.

É preciso desembrulhar o rosto do mundo, dessa parte intocável que não conhecemos, tão ingênua, tão boba, como fazer da loucura um pouso para o amor.

É preciso soletrar a palavra mundo como quem chega aqui pela primeira vez. E brincar de ser tudo aquilo que queremos. Tão pouco, tão simples, tão perto. Só assim. Só esse tanto. E amar, sem precisar de um motivo.