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Exatas, biológicas e humanas: há erros nesta divisão!

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Exatas, biológicas e humanas: há erros nesta divisão!
Rubens Russomanno Ricciardi, colunista do Portal Thathi

No Brasil se cristalizou a categorização de três grupos de ciências: exatas, biológicas e humanas. Parece que tudo se encaixa perfeitamente, estando a razão clara como a luz do dia. Mas por meio de uma teoria crítica teríamos, antes, que repensar esta divisão das grandes áreas do conhecimento.

Das ciências da natureza

Vamos pensar cronologicamente (e aqui já fica minha homenagem a Cronos/Saturno). Há vários bilhões de anos, houve um estralo original, também conhecido por Big Bang. Foi quando, supõe-se, teve início a matéria, o espaço e o tempo. O que havia nos primórdios do universo está relacionado à física e à química. Vários bilhões de anos depois surgiram as primeiras formas de vida. Entrava em cena o que entendemos hoje por biologia.

Todo este processo demiúrgico (como Platão entendia o surgimento do cosmo) pode ser definido como poíesis da phýsis (poética da natureza), ou seja, tudo que é inventado e produzido na natureza e em todo universo conhecido (galáxias, estrelas, planetas, luas, cometas, buracos negros etc., e tudo que há neles, com ou sem vida). A poética da natureza não apenas antecede em bilhões de anos o homo sapiens como nada tem a ver com ele. Somos minúsculos diante de tal monumentalidade. E nos falta ainda a humildade para reconhecer esta realidade.

Todos estes conhecimentos que estudam o que é criado e que existe no universo visam a compreensão das leis da natureza. Como são indissociáveis os parâmetros da física, química e biologia (e nesta ordem cronológica), podemos definir mais propriamente este bloco do conhecimento por ciências da natureza, com suas leis universais.

Heráclito chamou este conjunto de leis da natureza de lógos. Mas o lógos também se referia à condição humana de pensar de acordo com a natureza (daí homologar, ter o mesmo lógos) e ainda de inventar obras que levam a assinatura do autor. Portanto, há tanto um lógos da phýsis (leis da natureza), como também há um lógos humano (a capacidade científica, filosófica e artística de alguns entre nós).

O conceito de lógos em Heráclito, entretanto, é traduzido de modo redutivo tanto na bíblia latina, por verbum (palavra, linguagem), como nas ciências, por ratio (racionalidade, leis da natureza). Falta a integração de ambas enquanto conceito.

As ciências da natureza denotam conhecimentos empírico-matemático-teóricos, pois trabalham com experiências que testam a veracidade de determinado enunciado traduzível quantitativamente (a linguagem da matemática está sempre presente em seus fundamentos). E a permanência da condição científica depende de sua resistência frente às tentativas de falsificação – e quem disse isso foi Popper (aquele mesmo filósofo que advertia de “não tolerarmos a intolerância”, infelizmente ignorado no Brasil).

Não obstante o caráter empírico, as ciências da natureza também contemplam uma capacidade teórica independente de experiências. Basta lembrarmos de Einstein, cuja física foi elaborada apenas em teoria, uma vez que não havia, em seu tempo, tecnologias à altura que pudessem viabilizar experiências para comprovar ou refutar suas hipóteses de trabalho.

Neste sentido, podemos diferenciar as ciências da natureza que pensam criticamente, daquelas meramente submissas a tecnologias. A tecnologia é uma ferramenta cultural, pertencendo mais aos estudos culturais que às ciências da natureza. Enquanto ferramenta cultural, a tecnologia estará sempre condenada à obsolescência.

E ao lado da física e da química, a biologia, portanto, é igualmente uma ciência da natureza. Basta perguntarmos: é possível um biólogo que não saiba matemática, física e nem química? Claro que não.

E eis que os seres vivos foram evoluindo (e o melhor conjunto de teorias para explicar esta evolução remonta invariavelmente a Darwin) e daí surgiram comunidades complexas, com milhares de indivíduos que se relacionam com padrões sofisticados de comunicação e com regras sociais e mesmo morais determinadas, muitas vezes rígidas.

Estamos falando já do homo sapiens, da nossa brilhante espécie? Não! Estamos falando das formigas, das abelhas, dos demais primatas etc.

Dos estudos culturais

Este conjunto de padrões de comunicação com o estabelecimento de regras sociais e de comportamento, chamado cultura, ocorre a todo instante na natureza. Então, se não é a cultura que diferencia o homo sapiens das demais espécies, o que seria então? São nossas possibilidades científicas, filosóficas e artísticas. Só podemos falar em linguagem de fato nestas condições. Já o cotidiano da cultura produz tão somente tagarelices.

Estas são, claro, teses drásticas. Tal como nos ensinou Adorno, “toda tese drástica é falsa” (justo ele, com tantas teses drásticas, brilhantes e essenciais em sua filosofia). Mas a ironia aqui, ainda assim, faz-se pertinente. Temos sim que criticar o modo como se superestima hoje em dia, por aí, as dimensões do ambiente meramente cultural.

Heidegger chamava estas convenções arbitrárias de “ditadura da opinião pública”. Já Nietzsche as chamou de consensus sapientium (unanimidade dos sábios). Ou seja, quando um tipo de conhecimento se impõe por meio de normas meramente culturais. Trata-se ainda de um lobismo de caráter político, difícil de ser reconhecido, sempre se impondo frente às possibilidades do conhecimento e causando distorções. Marx chamava estas distorções de “ideologia”, quando uma falsa autoridade procura se legitimar por meio de aparelhos de poder (chamado processo de alienação, no qual poucos dominadores estão sempre ludibriando multidões de dominados).

Como, posicionei Marx, Nietzsche e Heidegger em confluência na questão do engodo no conhecimento? Será que me perdi? Talvez não.

Está claro que culturas desenvolvidas pelo homo sapiens, ao longo de milênios, foram ainda mais complexas e sofisticadas que aquelas de outros seres vivos. Mas a definição de um ambiente cultural já serve de modo amplo a várias espécies, pois a cultura, como vimos, não é prerrogativa do homo sapiens. Trata-se do conjunto de costumes, hábitos, cotidianos, normas, regras, repetição não crítica de padrões e a toda forma de comunicação, incluindo-se ainda a lógica de sistemas. Isso é cultura e só isso é cultura.

Já é tempo de nos livrarmos das antigas definições culturalistas de cultura, que, mesmo com boas intenções, mais prestaram desserviços. Cassirer, por exemplo, definiu cultura como “a ampla casa do ser humano, mais fácil de destruir do que de preservar, por sua frágil proteção”. Se continuarmos pensando assim, “conferindo significado por meio da cultura”, na qual a filosofia e as artes se abrigam neste vale tudo, que é o guarda-chuva da cultura, permaneceremos nesta epistemologia (possibilidades filosóficas sobre o processo de conhecimento) precária, cujos resultados estão sendo às vezes catastróficos. Não raramente confundimos indústria da cultura com arte. E confundimos também autoajuda com filosofia. A filosofia e as artes, segundo Heidegger, e ele está certo, só são possíveis se transformarem esse chão cultural num abismo.

Já que citamos o conceito frankfurtiano de indústria da cultura (Kulturindustrie), cabe aqui sua definição. Trata-se de um sistema ideológico que surgiu no século XX com as novas tecnologias de comunicação de massa, impondo produtos audiovisuais e best-sellers fabricados em série e padronizados de acordo com o perfil e classes de consumidores passivos e desprovidos de espírito crítico. Tal como uma igreja que diferencia fiéis de hereges, a indústria da cultura impõe mecanismos de adequação e padronização. Os hereges excluídos mal sobrevivem em seus contextos sociais. Se nos tempos de seu surgimento, no início do século XX, a indústria da cultura ainda se atrelava à arte, ocorreu desde então um processo gradativo de afastamento. Passado já quase um século, a indústria da cultura impõe de modo soberano seus próprios sistemas e já prescinde quase que totalmente da arte. Há sempre cada vez menos elementos artísticos na indústria da cultura.

Eis que há estudos da maior relevância que se concentram nas questões culturais do homo sapiens: sociologia, antropologia, história, geografia, pedagogia, psicologia (neste último caso, não obstante aqueles que entendem como biológicos seus fundamentos) etc.

E temos o recente caso do presidente atual – e por isso escrevemos este artigo – que efetuou uma generalização e elegeu, como suas inimigas e que devem ser combatidas e destruídas, a “filosofia e a sociologia, da área de humanas”.

Daí decorre a dupla incorreção: primeiro, nenhuma área do conhecimento deve jamais ser hostilizada. Muito pelo contrário. Todas as áreas do conhecimento são essenciais e devem funcionar como sistemas abertos em constante interação. Ou como diria Gadamer, na questão dos conhecimentos humanos, temos sempre que procurar uma “fusão de horizontes, porque não vivemos num horizonte fechado, nem num único horizonte”.

E na segunda incorreção (talvez a mais amplamente compartilhada), o presidente definiu a sociologia e filosofia como “humanidades”. Portanto, como vimos, sociologia é um estudo cultural, e filosofia é filosofia, é uma condição própria do pensamento crítico em si. Em suma, não pode ser considerado estadista quem agride a filosofia e os estudos culturais de seu próprio país. Mas melhor deixarmos a política de lado e voltarmos à discussão em torno das áreas do conhecimento.

Se nas ciências da natureza há uma condição empírico-matemático-teórica, por sua vez, nestes estudos culturais, elencados acima, toda a pesquisa é exclusivamente teórica (teoria no sentido grego de se olhar e se observar determinado objeto existente com os olhos críticos do conhecimento).

E devemos pensar em termos de estudos culturais, e não em ciências humanas ou humanidades. Temos sim que nos libertar do nonsense (da falta de sentido) do rótulo “ciência humana”. Existe por acaso alguma ciência que não seja humana? O que seria uma ciência inumana? Ou haveria uma ciência extraterrestre? Aí sim talvez faria sentido, diferenciarmos as ciências humanas das ciências dos ETs. Por enquanto, ainda não dispomos desta alternativa.

Ou ainda, o Holocausto já nos indignou com ciências desumanas e não devemos esquecer os crimes nazifascistas em nome das ciências. Neste sentido poderíamos falar sim, como contraponto à barbárie, em ciências humanas, voltadas para o bem (rompendo as relações entre ciências e perversidade). Só que neste caso seria uma outra acepção de ciências humanas, diversa da discussão aqui. Talvez “ciências para a paz”, reunindo todas as formas de conhecimento? Mas quem sabe seja apenas sonho remoto ainda.

Se formos pensar para além da mera cultura, a ciência humana por excelência seria a medicina, porque deveria tratar do ser humano em sua plenitude. As ciências médicas, tal como a engenharia e a educação física, entre outras, são áreas autônomas dentro das ciências da natureza. Elas também contemplam poíesis e práxis, tal como as artes.

No caso dos estudos culturais, os objetos de pesquisa têm em comum o fato de serem sempre condenados à obsolescência. São, por assim dizer, objetos datados e localizados. Por isso, o método próprio dos estudos culturais é o relativismo, também chamado relativismo cultural. Cada comunidade humana (em seus ambientes histórico-geográfico-sociológico-antropológicos etc.) deve ser estudada, tendo-se em vista a especificidade de seus preceitos morais, sem transporte forçado de realidades.

Temos, assim, que relativizar os critérios. Não podemos estudar a moral e os costumes dos romanos, por exemplo, no mesmo contexto da Idade Média, que, por sua vez, é diferente do Ancien Régime e também ainda mais diferente dos nossos tempos atuais.

Contudo, ao lado deste bom relativismo, ocorre já, há algumas décadas, um tipo ruim de relativismo, o chamado relativismo niilista (alguns dizem também culturismo, no sentido pejorativo da ênfase à cultura). O mau relativismo acaba excluindo o pensamento crítico por meio de seus clichês: “tudo é relativo”, “não existe verdade”, “verdade está no interior de cada um” ou ainda “cada um tem sua verdade particular”, e assim por diante.

Segundo o relativismo niilista (cuja seriedade questionamos aqui), não há conhecimento possível sem que haja uma implicação cultural. Tudo se reduz a bens culturais, numa mecânica brutal contra a qual nada se pode contrapor. Em sua intolerância, não só as ciências da natureza devem se submeter às amarras redutivas da cultura (esta mesma natureza que já existia bilhões de anos antes do primeiro humano), como também a filosofia e as artes (das quais, de fato, só interessam as obras que justamente transcenderam o ambiente cultural).

De certa forma, o relativismo niilista acaba cerceando a liberdade na filosofia e nas artes. Quem pensa diferente, propõe crítica ou inventa obra fora dos padrões culturais desejados (sejam lá quais forem), é tachado de axiomático, e, quando já não, preconceituoso.

Estou dizendo com isso, que as ciências da natureza, a filosofia e as artes não podem ser objetos de pesquisa para estudos culturais? De modo algum. Apenas que temos que reconhecer seus limites por conta da questão da linguagem, da poíesis artística ou da crítica filosófica. Resumindo, não devemos confundir, nem misturar, cultura com lógos.

Neste mesmo contexto, Heráclito já advertia, seis séculos antes de Cristo, que o “lógos é um só, mesmo que a massa suponha possuir um pensamento particular”. Está claro, portanto, que o relativismo, enquanto método, deve valer só para os estudos culturais.

Aliás, o objeto de predileção de vários estudos culturais sérios já vem sendo naturalmente a própria indústria da cultura (afinal, trata-se de valorizar a lógica da quantidade estatística, o que também facilita a inserção de gráficos bastante precisos), em pesquisas nas quais são excluídas as reais questões das distorções ideológicas, bem como se ignora os problemas de linguagem. Mas são pesquisas culturais sobre assuntos culturais. Está tudo em ordem.

Da filosofia e das artes

E estão confundindo ainda a filosofia e as artes com os estudos culturais, estes sob o equivocado nome de humanidades, como vimos. Temos, assim, uma sucessão de equívocos. Ora, a filosofia e as artes são condições raras e privilegiadas para se criticar a cultura, num fecundo distanciamento crítico dela.

Diferentemente das ciências da natureza, a filosofia e as artes não têm nada a ver com tentativas de refutações. Quem poderá afirmar, por exemplo, que Shakespeare errou ao dizer que havia “algo de podre no Reino da Dinamarca?”. Ou Heráclito, quando afirmou estar “a massa empanzinada como o gado”. Ou ainda no caso de Dante Alighieri – outro que deve ser refutado? – quando previu que os ingratos, delatores e traidores permanecerão imóveis no Poço dos Congelados, o lugar mais sombrio em seu Inferno?

Claro que não, porque os conhecimentos artísticos e filosóficos revelam, inauguram o que permanece e fundam a história. E suas verdades permanecem irrefutáveis, pois não têm nada a ver com refutações. Tanto a filosofia, como as artes, se pensarmos nos grandes mestres, transcendem a cultura de seu tempo e espaço, e jamais se tornam obsoletas ou datadas.

A filosofia não é ciência da natureza, nem estudo cultural – embora sem filosofia não haja fundamento para as ciências da natureza, e nem para os estudos culturais. Como dizia Heidegger, “pensar a filosofia como ciência ou bem cultural é como testar a capacidade do peixe de viver fora d’água”. Filosofia é uma condição especial do conhecimento, a mais primordial de todas. Ela tem que ser respeitada em seu elemento crítico próprio.

Neste sentido as artes e a filosofia são irmãs, porque seus elementos são próprios e diferenciados. Outra irmã que pode se juntar à filosofia e às artes é a mitologia. Mas devemos separar a mitologia da religião. A religião é a transformação redutiva da mitologia em sistema ideológico-cultural.

Para se ter uma ideia da força da mitologia ainda em tempos modernos, toda a teoria de Freud seria impensável sem ela. O homo sapiens possui esta inquietude mitológico-filosófica, de desde sempre se perguntar: “porque antes não havia nada, e depois passou a haver algo?”. Essa indagação demiúrgica se aproxima das questões filosóficas essenciais: o que é?, como é?, de onde vem? e a quem serve?

Nas artes, os processos inventivos independem das ferramentas culturais tecnológicas, não obstante seu uso. Aliás, é a ferramenta que serve à linguagem, e não o contrário. Mas o contrário, porém, ocorre sistematicamente na nova geração, dita blasé, que responde cada vez mais apenas a estímulos oriundos da “vontade de sistema”, que, como deveríamos saber, deste Nietzsche, “denota falta de integridade”. É o triunfo da cultura e de sua versão mais modernosa, a indústria da cultura.

Segundo o cineasta Godard, “a cultura é a regra e que a arte é a exceção”, e que “a regra quer a morte da exceção”. Basta lembrarmos que o Conselho da Cidade de Bach, logo após sua morte, simplesmente proibiu sua música (proibição esta que durou cerca de 70 anos).

As artes contemplam conhecimentos empírico-prático-poéticos, numa articulação indissociável de phrónesis (sabedoria prática)com poíesis e práxis. Nas artes há experiências e pesquisas tanto na poíesis (invenção e produção da obra) como na práxis (interpretação-performance), voltadas a resultados artísticos.

A poíesis (produzir, inventar, compor obras de arte) ou poética (ou ainda poiética, uma melhor adaptação de poíesis, assim como estesia seria uma melhor adaptação de aísthesis para a estética), neste sentido primordial, compreende ao mesmo tempo a concepção (projeto, programa, manifesto normativo) e a produção (composição, realização da escritura) da obra de arte. É por isso que falamos corretamente da poética, e complementando ainda, do estilo, de um autor teatral, literário ou libretista, de um compositor, de um artista visual, ou de um coreógrafo na dança, do arquiteto, entre outros exemplos. O conceito é válido não só para a poesia, mas também para todas as artes.

A práxis denota o ofício dos artistas na interpretação/execução da obra de arte (ator, bailarino, cantor, instrumentista, maestro, diretor no teatro ou no cinema etc.).

Devemos lembrar que a poética (produtivo, inventivo) é diferente da prática (ação). Segundo Aristóteles, e sua teoria permanece perfeitamente atual, “há que se distinguir o que é produzível daquilo que é realizável pela ação. A produção (poíesis) é diferente da ação (práxis). A disposição prática conformada por um princípio racional é diferente da disposição produtora conformada por um princípio racional. Nenhuma das duas é envolvida pela outra, porque nem a ação é produção nem a produção é ação”.

As artes (por serem poéticas, inventivas, elaboram obras, além de performances práticas) são essencialmente distintas dos estudos culturais (os quais contemplam exclusivamente uma atividade teórica). Resumindo, nas artes há poíesis e práxis, que inexistem nos estudos culturais.

Além da poesia e literatura – literalmente as artes de linguagem – abordamos sempre já a questão da linguagem em todas as artes por meio de uma metáfora. Segundo o aedo Simônides, temos exemplo de como são antigas as metáforas entre as linguagens artísticas: “a pintura é uma poesia silenciosa e a poesia é uma pintura que fala”. Numa perspectiva heideggeriana, a linguagem não é apenas e nem em primeira linha uma expressão sonora (palavra falada) ou escrita (palavra impressa) daquilo que deve ser comunicado. A linguagem promove aquilo que se pretende difundir não apenas com palavras e frases. Tal como a arte, a linguagem é sempre essencialmente poesia. E a essência da poesia está presente em todas as artes.

E, tal como nos ensinou Ricoeur, “o artista é um artesão em obra de linguagem”. Além do artesanato (exceto a arte conceitual), toda grande obra de arte contempla também uma singularidade inventiva e uma exposição de mundo.

Mas o conceito de obra vem sendo relativizado de modo niilista por conta das implicações culturais, não raramente forçadas. Soma-se a isso o quase completo esquecimento do mais artístico entre todos elementos: a inventividade poética. Nossos tempos são do esquecimento da poíesis. Não é por menos, a poética artística anda em baixa, bem como a obra de arte enquanto tal (vem sendo substituída pela pirotecnia oportunista da indústria da cultura).

Aliás, o esquecimento da poíesis implica numa tragédia maior. Hoje em dia se diz que tudo é criativo, tudo é criação – e nada há de mais banalizado que o adjetivo criativo. Diz-se frequentemente da pessoa criadora, criativa (em geral, os publicitários e os tecnólogos da engenharia genética são os que se autoproclamam os mais criativos).

Mas temos que diferenciar a poíesis do lógos enquanto phýsis (poética da natureza), da poíesis do lógos enquanto téchne (poética humana, sendo a téchne a habilidade humana na elaboração inventiva de obras). Aliás, São Tomás de Aquino tinha razão, independentemente de referências religiosas ou morais, quando censurou: “chamar de criação as obras humanas é blasfêmia”. Quão fecundo seria, se separássemos a invenção humana (inventio) da criação da natureza (creatio), pelo menos ganharíamos em humildade, que já seria um grande feito. Esta confusão do ser humano com o ente criador não está dando certo.

Ainda sobre a poíesis, uma ponte concebida por um engenheiro, ou um arquiteto, é uma obra poética. Um dente que é reconstruído por um dentista habilidoso é também um procedimento poético. Um médico cirurgião que reconstrói uma mama também efetua um procedimento poético.

Na propedêutica pitagórico-platônica, reestabelecida por Cassiodoro na Idade Média, havia sete artes liberais, com o Trivium (retórica, gramática e dialética, que seriam hoje as ciências das letras) e o Quadrivium (astronomia, música, geometria e aritmética, diziam das ciências matemáticas, diretamente atreladas às leis da natureza), porque ainda levavam a sério o conceito de poíesis (poética) e téchne (arte), numa dinâmica epistemológica talvez melhor que a nossa de agora. Temos que voltar a valorizar a poíesis enquanto condição importante do conhecimento, nas artes e nas profissões atreladas às ciências da natureza, já citadas.

Com isso pretendemos dizer que devemos retornar às artes liberais da Idade Média? Claro que não. Mas temos que repensar de novo ainda hoje as áreas do conhecimento, compreender com maior sensibilidade suas essências e as interfaces entre elas. Daí sim, daremos um passo epistemológico para o bem de todos.

Conclusões

Sobre a divisão do conhecimento em ciências exatas, biológicas e humanas:

– Primeiro erro: as ciências ditas exatas são, na verdade, as ciências da natureza.

– Segundo erro: as ciências biológicas, na verdade, fazem parte das ciências da natureza.

– Terceiro erro: as humanidades, na verdade, são estudos culturais.

– Quarto erro: a filosofia e as artes não são “humanidades” nem “ciências humanas” de modo algum. São áreas específicas e apresentam seus próprios elementos diferenciados.

– Proposta: Faz-se necessária uma nova divisão efetiva (e claro, vão se incluir naturalmente as centenas de suas subdivisões) nas grandes áreas do conhecimento: ciências da natureza, estudos culturais, filosofia e artes.

Devem ser quatro, e não três, portanto, as grandes áreas do conhecimento, de acordo com os critérios acima expostos.