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Eu e as bichas

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Eu e as bichas
Imagem ilustrativa | Foto: Arquivo

Aos nove anos, descobri que tinha uma bicha dentro de mim. Minha magreza contrastava os outros meninos. O engraçado é que eu comia muito. Almoçava, jantava e ainda tinha apetite para qualquer parada. O Dr. José era uma espécie de pediatra eterno, desses conservados em formol. O que falava, ninguém ouvia, o que escrevia, nem Champollion decifrara. Por duas vezes minha mãe levou-me até ele. Na primeira, o velho me examinou com riqueza de detalhes.  Receitou um sal amargo, que eu deveria tomar duas vezes ao mês. O ritual era estranho: meu pai vinha com o remédio num domingo cedo, quando nem o sol ousara aparecer. O sal estava dissolvido num copo d´água americano.

Copo na mão direita e laranja na mão esquerda. A cena exigia requinte de circo, era beber o sal amargo e, sem piscar, entupir a boca com a laranja, pois o amargor era desafiante para qualquer mortal. Depois era esperar alguns minutos, quarenta no máximo, e o efeito acontecia em forma de vulcão; uma diarreia tão forte que eu fazia do banheiro o meu oásis. Passava assim o meu domingo, entre a merda e o ódio daquele médico maluco. Na segunda vez, Dr. José, depois de chegar a conclusão que caganeira não era a cura, foi enfático: – É bicha. É certo que na naquela época, aos nove anos de idade, pouco ou nada sabíamos da vida, mas eu sabia sim o que era uma bicha. – Não sou isso, não, respondi defendendo a minha hétero condição machista. Minha mãe sugou-me com o olhar, fechou a cara e o velho médico deu uma risada e concluiu, – Verminose, bicha é verminose. O menino está com vermes, por isso tão magro. Dali veio um remédio comprado na farmácia do Dr. Frankilin, cinco cápsulas amarelas, enormes, que quase sempre engasgavam na garganta. Para acompanhar as cápsulas, tinha que tomar Biotônico Fontoura duas vezes ao dia e uma tal de Emulsão de Scott, que nada mais era do que óleo de fígado de bacalhau.

Eu tenho certeza de que tudo aquilo não era remédio e sim uma batalha indomável contra as pequenas lombrigas que viviam docemente na minha barriga, as bichas. Apesar da artilharia pesada, nenhuma lombriga morreu. O sofrimento mudou de parede e ficou comigo. Até hoje odeio tudo que é amargo ou engasga na garganta. Quanto mais o tempo passava, mas eu emagrecia. Minha diversão preferida era contar os ossos da costela. Eu comprimia o ar e as costelas saltavam. Minhas primas ficavam horrorizadas e minha mãe quase chorava. Foi nessa época que Dona Conceição veio trabalhar na minha casa. Mineira de Passos, a velha cozinhava magnificamente. Tinha um sorriso largo, braços gordos e uma estranha planta colocada atrás da orelha, um ramo de arruda. Foi Dona Conceição quem me salvou da cruzada bichistítica. Depois de presenciar a cruel inquisição dos remédios, ela constatou que eu precisava de uma benzedeira. Minha mãe, ainda naquela época, era cética e só acreditava no que via. Acho mesmo que nem sabia rezar.

Anos mais tarde, ela se converteu e foi uma líder religiosa (mas isso fica para outra história). Se os remédios do Dr. José não faziam efeito, como uma benzedeira mudaria o cenário? Dona Conceição disse que os demônios fazem mal às crianças, por isso era preciso proteção. Ninguém mata bicha melhor do que uma benzedeira.  Eu ouvia e me assustava. Tinha medo. Certo dia, minha mãe, ao chegar da escola, disse ter descoberto a benzedeira: uma tal de Dona Irene, que morava na Epitácio Pessoa. Foi feito uma cruzada santa na minha casa: minha mãe a minha direita e Dona
Conceição a minha esquerda. E lá fomos nós, amparados pelas sombrinhas coloridas, já que o sol escaldante não perdoava ninguém, nem os soldados de Deus. A casa da Dona Irene era nos fundos de uma casa rosa. Entramos sem cerimônia. Num pequeno alpendre havia uma imagem de Nossa Senhora Aparecida no canto da parede. Havia também velas acesas e um cheiro de incenso que tomava o nariz.

A sala era escura e úmida. Eu nunca tinha ido a um velório, mas tinha certeza que deveria ser daquele jeito. De repente, Dona Irene chegou. Falou no ouvido da minha mãe alguma coisa. Minha mãe tirou da bolsa duas velas apagadas e um terço embrulhado numa nota de dez cruzeiros, que tinha a figura de Getúlio Vargas. Foi então que ela chegou até mim. Passou o polegar na minha testa, em sinal da cruz e fez o mesmo na boca e na barriga. Pegou um maço de folhas, colocou na água e começou me benzer. “ Santos Reis tinha doze filhos, de doze morreu um ficaram onze, de onze morreu um ficaram dez, de dez morreu um ficaram nove, de nove morreu um ficaram oito, de oito morreu um ficaram sete, de sete morreu um ficaram seis, de seis morreu um ficaram cinco, de cinco morreu um ficaram quatro, de quatro morreu um e ficaram três, de três morreu um ficaram dois, de dois morreu um ficaram um e esse um se arrebentou graças a Deus”.  Rezou uma ave-maria, um pai-nosso e foi embora.  No dia seguinte, logo cedo, eu fui ao banheiro. Tomei o maior susto da minha vida: lá estavam elas, as bichas. Pequenas cobrinhas, estranhos seres, que me fizeram gritar. Dona Conceição entrou, viu aquilo tudo e começou a rezar. Minha mãe preferiu ficar no lado de fora. Eu estava salvo. As bichas morreram, eu engordei e a vida levou todo mundo. Até hoje eu me pergunto: os demônios fazem mesmo mal às crianças?