Do absorvente à urtiga

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Foto: Reprodução internet

Causa-me asco o discurso da elite brasileira, a mesma que arrota transformações sociais enquanto descansa no sofá. O presidente da República, legitimamente representante desta parcela social, afinal 57 milhões de votos precisam ser respeitados, vetou o projeto que distribuiria absorventes higiênicos às mulheres de baixa renda. Os motivos alegados (e o principal deles é não ter origem do dinheiro para realizar a distribuição, já que oneraria o Estado e fugiria ao teto de gastos, o que poderia representar uma improbidade administrativa e, como consequência até mesmo o impedimento) não cabe discussão aqui, já que é um assunto técnico – político e não quero torrar a paciência do leitor. O que me chama atenção, no entanto, é o discurso decorrente de uma grande parte, senão a maioria da elite deste país, que aplaudiu a decisão e ainda defendeu que tal atitude é assistencialista, geradora da comodidade dos pobres e miseráveis brasileiros.

O grande compositor Aldir Blanc e seu parceiro Maurício Tapajós compuseram uma das mais proféticas e perfeitas análises do tecido social brasileiro: Querelas do Brasil, cujo refrão é uma cirurgia sem direito à anestesia: “O Brazil não conhece o Brasil”. Basta notar que a defesa da recusa presidencial fala em oneração e ultrapassagem dos recursos disponíveis, em síntese, é muito dinheiro. Se o Estado acha caro, imagine, as famílias pobres e carentes! Fiz uma pesquisa entre as mulheres que me cercam e todas me disseram que, durante o fluxo menstrual, fazendo a devida higiene, gasta-se em torno de dois pacotes de absorventes, o que representa, dependendo do tipo e da marca, cerca de R$ 36,00 ao mês. Ora, esse valor para cada mulher, é quase 3% do salário mínimo. Se numa casa houver três mulheres, o valor vai a 9% do salário mínimo. Nada de mais para quem tem um ganho superior a um salário mínimo por residência, o que não é o caso do Brasil. O presidente não está errado, onera muito o governo, da mesma forma que onera as famílias pobres.

O absorvente higiênico é um dos itens da dignidade humana, que não pode ser esquecida por quem quer que seja. Ouvi, assustadoramente, que o antigo uso das toalhinhas deve ser alternativa, ou então, como já acontece, colocar miolo de pão ou até mesmo, deixar o fluxo livre. Onde vivem essas pessoas que pensam assim? Que não entendem que a evolução é o caminho social a ser distribuído a todos e não aos que exibem seus celulares de última geração. O caso do absorvente é apenas um diante da estupidez e da elite brasileira, da qual, infelizmente eu também faço parte. Essa mesma elite que, quando viu a declínio do ensino público, não gritou, não se moveu, não exigiu, apenas colocou seus filhos nas escolas particulares e pouco se importou com os outros. Essa mesma elite que, quando viu a segurança pública ser massacrada pelo Estado, aumentando significativamente os índices de violência, mudou de suas casas para condomínios fechados e passou a ter carros blindados. Essa mesma elite que vocifera contra a política de cotas nas universidades alegando a estupidez da meritocracia , desviando o olhar para as imensas desigualdades sociais que permeiam o país.

Essa mesma elite que vê seus semelhantes comerem ossos e, aterrorizada, faz um churrasco no fim de semana para comemorar a vida. Essa mesma elite que conta seus mortos na pandemia , mas não admite que exista uma carteira de vacinação para impedir que alguns não vacinados contaminem o ambiente, e se posicionam contra o uso das máscaras, achando que a doença acabou. Essa mesma elite que se abastece diariamente de hipocrisias e falta de educação, que não consegue entender que dignidade é direito e não discurso de politico, seja lá de que lugar na mesma esteja, direita, esquerda ou centro. Essa mesma elite que não se importa com os projetos de impunidade aprovados pelos seus legisladores e governantes, pondo em risco a única via de crescimento que ainda possuímos: a democracia.

Causa nojo nos que acreditam em mentirosos , enganadores que apresentam discursos de melhoria do Estado e praticam o retrocesso como solução. Não culpo dó os políticos, culpo aqueles que lá os colocaram. Direita, esquerda, são entulhos da mesma lixeira, salvo raríssimas exceções. Repito: o caso dos absorventes é apenas um pequeno espinho no jardim das barbaridades. Não colheremos rosas, cravos ou tulipas, colheremos urtigas. Definitivamente, o Brazil não conhece o Brasil.