Home Notícias Cotidiano Covid-19 – relato de um sobrevivente.

Covid-19 – relato de um sobrevivente.

0

Resolvi compartilhar minha experiência sobrevivendo ao Covid-19, para servir de apoio para aqueles que passaram por essa situação ou de alguma forma vão passar, seja contraindo a doença ou acompanhando familiares ou amigos próximos que venham a ser contaminados.

Sou professor da rede pública estadual de São Paulo e, por essa e mais aquelas, todos os anos tenho tomado a vacina da gripe, assim como meu pai, no Posto de saúde da Zona Norte de Ribeirão Preto e este ano não foi diferente; tomamos a vacina no final de março.

Após duas semanas, numa sexta feira, percebi meu corpo um pouco estranho, como se estivesse com gripe, fiquei preocupado, já que tinha tomado a vacina da gripe e, caso houvesse alguma reação deveria ter ocorrido em até 48 horas, não após duas semanas, enfim aguardei.

No dia seguinte, um sábado, acordei da mesma forma, mas, como tinha intervalos de disposição com momentos de sentimento de cansaço, corpo ruim e sem febre, fui com minha família e noiva até nossa chácara que fica nas imediações de Serra Azul; nesse dia meu pai também estava com os mesmos sintomas, à noite pedimos uma pizza e, quando coloquei na boca percebi um gosto estranho, parecia sem tempero, tomei um refrigerante e parecia sem gás, foi nesse momento que comecei a pensar na hipótese de ser a tal da famigerada Covid-19.

Foi aí que começou nossa trajetória de muito medo e de sensações nunca antes experimentadas, nem em minha breve vida nem da de meu pai.

No domingo, acordei da mesma forma, comecei a tomar dipirona e melhorei, embora ainda não estivesse sentindo o gosto de alimentos, e foi assim por todo o dia.

Na segunda-feira, entrei em contato com o Dr. Ulisses Strogoff, médico e amigo, relatando o que estava sentindo, como infectologista ele foi enfático “você está com Covid, muito provavelmente sua família também está, façam o exame”.

Na hora tive a sensação de que não poderia ser, pois tomava todas as medidas de segurança, estou trabalhando em casa – home office – desde o início da pandemia e, quando precisei sair para ir ao mercado, sempre usei máscara e óculos para proteção.

No entanto, um detalhe era o motivo da maior preocupação, meus pais estavam trabalhando regularmente, pois são comerciantes de setores essenciais, e convivo com eles diariamente na mesma residência.

Na quarta-feira, à tarde, fui à UPA da Avenida 13 de Maio, como não tinha muita gente, pude conversar mais tranquilamente com o enfermeiro – ele todo paramentado – e disse que achava que estava com Covid; ele me perguntou os sintomas e, quando disse que tinha perdido o olfato e o paladar, encaminhou-me imediatamente para a fila do exame. Como era o início do distanciamento social em Ribeirão Preto, estava muito tranquilo para fazer o exame, tinha apenas duas pessoas na minha frente, fiz o exame que insere uma espécie de cotonete no nariz e na garganta – muito desconfortável, por sinal – e fui embora, mas ainda não acreditava ser Covid, pois diferentemente do que via na TV e lia não tinha febre, falta de ar, nada disso, nem tosse apresentava naquele momento.

Para minha surpresa na quinta-feira, ao final da tarde, comecei a tossir uma tosse chata, persistente; no sábado, comecei sentir que piorei, estava com 38 graus de temperatura, fui ao Pronto Atendimento e o médico que fez a avaliação clínica disse que oxigenação estava boa e que não apresentava nada grave; que se estivesse com Covid meu organismo estava respondendo bem, mandou-me de volta para casa e se tivesse febre tomaria dipirona e caso sentisse falta de ar voltasse para a unidade.

Enfim, aguardei ansiosamente o resultado que só ficou pronto quase uma semana após ter feito a coleta e, sim, deu positivo e fiquei bem preocupado, pois meus pais têm mais de 60 anos.

Além dos sintomas físicos, essa doença tem uma capacidade muito grande de influenciar nosso psicológico de forma grave, devido a tudo que assistimos e lemos desde o seu início, a gente chega a pensar que tudo de mal poderá acontecer.

Os médicos que me atenderam nesse momento foram bem claros: após sete a oito dias a doença teria uma evolução para melhora ou então começaria a piorar e, no décimo ou décimo primeiro dia, poderia ser internado.

Apesar de todo medo e aflição desses dias que pareciam não passar, enfrentei a quarentena mantendo a hidratação, isolado e mantendo a dieta que faço há muito tempo: ao acordar, tomo própolis verde com um copo de água, tomo mel, coloco açafrão nos alimentos, tomo gengibre em pó na água, procuro comer de duas a três frutas todos os dias, não bebo, não fumo, mas estou acima do peso e hipertenso controlado com medicação, enfim condições que deixam qualquer um preocupado, principalmente ao ser diagnosticado com Covid.

O décimo quinto dia foi uma grande vitória, pois, embora ainda estivesse com tosse, já podia sentir que o paladar e o olfato estavam voltando (quando perdi o olfato e o paladar procurava todo dia levar um limão ao nariz e uma pomada de arnica, ou seja, aromas fortes, e incrivelmente não sentia cheiro algum e também não sentia os sabores; seja uma pizza de calabresa com muita cebola ou um sorvete de baunilha com muita calda de chocolate a falta de gosto era a mesma, enfim, só comia para não ficar mais fraco, pois o prazer de comer já não existia – imagino que isso colabore para o emagrecimento que a doença provoca).

Essa foi minha experiência com essa realidade que vivenciamos e com a qual ainda iremos conviver por muito tempo, estou certo de que tive sorte e também um atendimento médico que permitiu ter informações para evitar piora ou mesmo contaminar outras pessoas. Seguramente a demora em conhecer o resultado pode piorar a situação, também senti falta da Secretaria da Saúde em acompanhar de perto minha família, foi as orientações foram passadas por telefone e nenhum remédio foi prescrito nesse período para tentar combater a doença.

Felizmente os sintomas, para meus pais, foram leves, embora sintomas minha mãe tenha ficado sem olfato e paladar por cinco dias.

Fico pensando como será a situação de quem depende de transporte público, sucateado e com frota reduzida todos os dias?

Os (as) trabalhadores(as) informais com o atraso das parcelas do auxílio emergencial e a ameaça de sua redução pelo (des)Governo Federal?

Os(as) trabalhadores(as) de aplicativos, por exemplo, só recebem se trabalham, carregam em seus veículos dezenas de pessoas todos os dias, têm contato com muitas pessoas nas entregas que realizam. Que segurança o mundo do trabalho oferece para essas pessoas? Que segurança o município e o Estado têm garantido?

Para eles e elas, principalmente, são necessárias redes de proteção social, precisam ter direito a ausentar-se do trabalho, precisam ter direito a médicos da família, precisam ter garantia de seguros se não puderem realizar seus trabalhos informais.

São os mais pobres e vulneráveis os mais afetados nessa pandemia, crise que se acentua com a desorganização de nosso executivo que atende aos interesses comerciais de flexibilização do isolamento, causa uma explosão de casos e ao mesmo tempo permite redução da frota de ônibus, falta de fiscalização em toda cidade para aqueles que descumprem as medida de segurança, sem hospital de campanha, enfim, uma situação limite como a atual.

Aos trabalhadores e às trabalhadoras mais pobres é dado o direito de escolha: podem morrer pelo vírus ou pela fome (escolha essa defendida pelos ultraliberais de terno, como Paulo Guedes e seus aliados aqui na cidade, como entidades do comercio e certos setores da mídia local, na defesa intransigente da flexibilização antes da hora).

Que liberdade é essa? Que falsa dicotomia é essa que apenas serve aos interesses do capital e dos endinheirados, que nunca coloca em primeiro lugar os valores da vida.

É o oposto da civilização e da democracia. A vida em sociedade pode e deve ser segura e livre de fato, mas apenas se houver um esforço de todos nesse momento e que resulte em políticas públicas que reflitam esse ideário.

É isso que esperamos de nossos governantes, a começar do municipal, pois muito mais do que estatísticas, estamos falando de histórias, de vidas, de laços, de seres humanos.

Enfim, o isolamento ainda mais forçado a que fui submetido só me fez acreditar que mudanças são necessárias, que mudanças são possíveis, que, como diz o poeta Caetano, “Gente viva, brilhando estrelas na noite /Gente quer comer /Gente que ser feliz / Gente quer respirar ar pelo nariz / Não, meu nego, não traia nunca essa força não / Essa força que mora em seu coração / Gente lavando roupa amassando pão / Gente pobre arrancando a vida com a mão / No coração da mata gente quer prosseguir / Quer durar, quer crescer, gente quer luzir / Rodrigo, Roberto, Caetano, Moreno, Francisco, Gilberto, João / Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”.