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Cine Vitória, Ben Hur e eu

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Quem frequentou o Cine Vitória sabe o sinônimo de cinema. A tela grande, as cadeiras de madeira, o baleiro enfeitado de Mentex e um som que chegava até às árvores da Praça Coração de Maria. A matinê domingueira  começava impreterivelmente às 14 horas. Aí de quem se atrasasse, não tinha arrego. O porteiro tinha a educação de um pitbull faminto.

Depois do segundo gongo, quando a luz apagava de mansinho, não havia santo na face da terra que conseguia entrar. Eu chegava cedo, no máximo 13h e trinta. Era a minha chance de ficar frente a frente com os meus heróis. Eu amava John Wayne.  Assisti No tempo das Diligências no mínimo umas vinte vezes.

Decorava as falas, o olhar e a destreza em sacar o revólver do coldre. Eu tinha uma cópia de um revólver Schmidt 44, cabo de madrepérola, que meus amigos invejavam. Na minha imaginação eu matava os bandidos e os índios malvados. Só perdoava padre, mocinha indefesa e índio camarada. Minha mãe me deu um cabo de vassoura com a figura de um cavalo na ponta. Batizei com o nome de Silver e ele fazia milagres, além de ser corajoso que só vendo.

E foi num desses domingos que minha vida se transformou completamente. Antes de começar o filme, veio o trailer daquele que seria o filme da minha vida: Ben Hur, estrelado por nada mais, nada menos que Charlton Heston. Além do John Wayne, que já era meio velhão, todos os meninos da Vila Tibério queriam ser Charlton Heston. Minha casa fazia vizinhança com uma academia de boxe e luta livre. Eu subia no muro e ficava vendo o pessoal treinar. Copiava tudo no quintal de casa. O sonho era ter o corpo de Charlton Heston.

Eu enchi duas latas de Neston com cimento e coloquei uma barra de ferro entre elas. Eram os meus pesos, aqueles me levariam à glória do cinema. O maior problema na exibição do Ben Hur é que o filme tinha mais de três horas de duração, seria apresentado somente à noite e a censura era quatorze anos. Não havia frustração maior do que essa, eu não me enquadrava em nenhuma das possibilidades, sem contar o porteiro, uma espécie de Cérbero do cinema. Passei dias planejando entrar. Roubei uma camisa gola rolê do meu primo e um paletó cinza do meu pai. Quando apareci daquele jeito na sala, minha mãe quase teve um ataque cardíaco de tanto rir, eu parecia um anãozinho de jardim.

A vida vem traduzida em cenas surreais. O meu desejo de ver o filme era tão grande que adoeci. Um febrão daqueles. Levaram –me ao médico que, por mais que procurasse, não achou motivo algum para tamanha enfermidade. Na esquina de casa havia a farmácia do Dr. Frankilin, mais que farmacêutico, uma espécie de guru. Ele foi até minha casa e me fez uma simples e singela pergunta: O que você tem meu menino? Eu respondi que estava triste, queria ir ao cinema e não tinha como entrar. Ele deu um sonoro sorriso, chamou a minha mãe e contou tudo. Na sexta-feira, meus pais me levaram ao Cine Vitória.

O porteiro não me barrou. Eu entrei como se tivesse ganho uma medalha. Meu pai comprou duas caixas de Mentex, afinal o filme duraria muito. Foram as três horas que mudaram a minha vida. Charlton Heston era eu . Fiz quatorze anos sem ter quatorze anos, venci o porteiro, andei nas bigas, tentei dar água a Jesus e sai do Cine Vitória quase uma hora da manhã. A Praça Coração de Maria estava vazia, a Rua Luis da Cunha estava vazia, mas eu o Cine Vitória testemunhamos o meu crescimento. Sobrou uma caixa de Mentex.