Home Notícias Cotidiano Abandono afetivo inverso: o que é?

Abandono afetivo inverso: o que é?

0
Abandono afetivo inverso: o que é?
Advogada, é graduada em Tecnologia em Processamento de Dados, especialista em Direito Civil e Processual Civil e pós-graduanda em Políticas Públicas e Sociais do Idoso.

Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho definem família como sendo “o núcleo existencial integrado por pessoas unidas por um vínculo socioafetivo, teologicamente vocacionada a permitir a realização plena dos seus integrantes”.

O dever de cuidar dos familiares está previsto no art. 229 da Constituição Federal, in verbis: “Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”.

Logo, à família cabe o dever de proporcionar um envelhecimento tranquilo e participativo baseado no dever mútuo de cuidado e respeito entre os familiares. Por vezes, a mera ajuda financeira serve como pretexto, assumindo e substituindo o cuidado afetivo integral. Não se questiona a importância do alicerce financeiro, mas o seu uso exclusivo encobre uma realidade mais trabalhosa. A pensão alimentícia não exime o filho de prestar amparo moral aos pais idosos.

Como sustentado, o dever de cuidar recíproco não se baseia apenas na ajuda patrimonial, porém também no convívio, amparo, respeito e na assistência, tendo em vista que o afeto é o princípio norteador das relações familiares.

Segundo Roberto Mendes de Freitas Junior: “Garantir a manutenção do idoso no seio familiar, portanto, constitui uma estratégia para manutenção da estabilidade física, moral e psíquica do idoso”.

Mas, o que vem a ser abandono? Segundo o dicionário da língua portuguesa, abandonar significa: “Deixar ao abandono, não dar mais atenção ou proteção; desamparar”.

No caso do abandono afetivo, ele é causado frequentemente com o avançar da idade, na qual o idoso acaba sendo considerado um estorvo pelos familiares. Com a vida cotidiana corrida e vários afazeres da vida moderna, os filhos perdem tempo e paciência para cuidar dos idosos e acabam terceirizando o dever – com a contratação de cuidadores ou casas de repouso – o que leva o idoso ao esquecimento.

Com tal realidade, é clara a existência de abandono afetivo, que pode acarretar diversas consequências jurídicas, como prevê a própria Justiça ao tratar da omissão de cuidados de crianças e adolescentes.

A expressão “abandono afetivo” surgiu em decorrência de um histórico julgado em que a Ministra Nancy Andrighi analisou o caso de uma filha no qual o seu genitor não queria manter nenhuma espécie de relacionamento com ela. Na realidade, trata-se da ofensa ao dever de cuidado que se encontra expresso no texto constitucional e no Código Civil.

Os nossos pais envelhecem quando estamos numa fase produtiva de nossas vidas, e acabam precisando de cuidados, atenção e paciência dos filhos. Portanto, é neste contexto que os papéis se invertem.

Assim, começamos a verificar que essa omissão do dever de cuidar não estava ocorrendo apenas com relação aos genitores e sua prole, uma vez que vem ocorrendo também com relação aos pais idosos que são abandonados à sua própria sorte pelos seus filhos adultos.

Portanto, a questão voltada ao abandono do idoso é denominada como abandono afetivo inverso.

Maria Berenice Dias define o abandono afetivo inverso como: “O inadimplemento dos deveres de cuidado e afeto dos descendentes para com os ascendentes, conforme impõe a Constituição Federal em seu art. 229”.

Na mesma seara, o desembargador Jones Figueiredo Alves (PE), diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), o interpreta como: “Abandono afetivo é a inação de afeto, ou mais precisamente, a não permanência do cuidar, dos filhos para com os genitores, de regra idosos, quando o cuidado tem o seu valor jurídico imaterial servindo de base fundante para o estabelecimento da solidariedade familiar e da segurança afetiva da família”.

O abandono pode ser material, quando não proporcionam ao idoso assistência para a sua sobrevivência, como comida, roupa e outras necessidades básicas, o que compromete a vida digna e afeta o princípio da dignidade da pessoa humana. O abandono afetivo material é considerado pelo Código Penal como crime de desamor, quando ocorre uma omissão sem justa causa na assistência, não proporcionando ao necessitado sustento básico para sua existência, por falta de recursos ou faltando ao pagamento de alimentos fixados judicialmente. Dessa forma, o idoso encontra respaldo além da CF/88, no art. 244 do Código Penal, in verbis:

Art. 244 – Deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, ou de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou maior de 60 (sessenta) anos, não lhes proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou ascendente, gravemente enfermo: (Alterado pela L-010.741-2003) Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa, de uma a dez vezes o maior salário mínimo vigente no País.

Em contrapartida, além da obrigação material, existe a imaterial, que compreendem o dever de cumprimento de deveres filiais pautados na convivência familiar e amparo ao idoso. Uma situação simples do abandono imaterial pode ser encontrada no momento que se chega ao imóvel que reside o idoso, a partir da verificação de que ele está descuidado, seja por falta de higienização ou por falta de medicamentos.

O abandono imaterial do idoso é respaldado pelo Estatuto do Idoso, nos arts. 4º, 98 e 99, os quais determinam a valorização do afeto, como um dever recíproco na relação entre pais e filhos.

A assistência emocional também é um direito do idoso, sob o aspecto existencial, como consta no diploma constitucional, em seu art. 229. Com tal dispositivo, o legislador incluiu, além da obrigação material de sustento, a obrigação imaterial relativa ao afeto, ao cuidado e ao amor. Tal questão é complexa, devido ao fato de que o afeto não é possível de ser imposto, considerando que o amor não é obrigação. Sobre o assunto, afirmam doutrinadores de que o descaso entre pais e filhos é algo que merece punição, é abandono moral grave, que precisa merecer severa atuação do Poder Judiciário, para que se preserve não o amor ou a obrigação de amar, o que seria impossível, mas a responsabilidade ante o descumprimento do dever de cuidar, que causa o trauma moral da rejeição e da indiferença.

Acerca do sentimento de solidão sofrido pelo idoso abandonado afetivamente, afirma-se que a pessoa que foi esquecida encontra-se numa situação de abandono que traz consigo um sentimento de desemparado, solidão, exclusão. Esse estado emocional advém não só do fato de a pessoa estar afastada fisicamente da família ou das pessoas de convívio próximo, senão o de estar privada de relacionamentos que gostaria de ter. Os vínculos anteriormente estabelecidos foram interrompidos, privando o idoso das suas realizações de afeto, o que leva a experiência de solidão pelos isolamentos social e emocional.

Diante de todo exposto, o abandono afetivo possui divergência doutrinária. De um lado a corrente que defende que o abandono afetivo pode ser incluído na responsabilidade civil, devendo o autor do dano responder civilmente pelos seus atos. De outro, a corrente que entende que a responsabilização pelo afeto seria uma obrigação de amor.

No caso do idoso, pessoa maior de 60 (sessenta) anos, conforme o Estatuto do Idoso, temos que é obrigação da família assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a convivência familiar e essa garantia de prioridade compreende, dentre outras possibilidades o convívio do idoso com as demais gerações e ainda o atendimento do idoso por sua própria família, conforme o art. 3º do Estatuto do Idoso.

Isso implica dizer que, se os filhos deixam de prestar assistência aos pais idosos eles estão ofendendo o dispositivo legal retromencionado. E quando se trata dessa assistência, destaca-se a convivência familiar, ou seja, a possibilidade desse idoso conviver com seus filhos adultos e seus netos.

É possível encontrar diversos posicionamentos doutrinários, resumidos em duas correntes. Uma delas defende que não haverá reparação pecuniária por abandono afetivo, por se entender que o amor não pode ser obrigado. Já a segunda corrente parte da ideia de existência da responsabilidade civil, com indenização por danos morais quando ocorre o desamparo, a falta de auxílio, de solidariedade e de afeto.

No que diz respeito aos Tribunais Brasileiros, é nítido que houve uma mudança de pensamento e fundamentos no que diz respeito ao reconhecimento do afeto e da responsabilidade civil pelo abandono afetivo. Isso porque os Tribunais vêm dando maior importância ao vínculo familiar e ao afeto, como ocorreu em decisão judicial do Egrégio Tribunal de Justiça do Distrito Federal, que concedeu mandado de segurança para diminuir a carga horaria do filho, que teria mais tempo para cuidar do pai idoso.

Inexiste um regramento legislativo que determine expressamente a reparação civil pelo abandono afetivo inverso. Diante disso, para solucionar o problema, em 25 de fevereiro de 2016, o então deputado Francisco Floriano apresentou o Projeto de Lei nº 4562/2016 que tem como objetivo alterar o art. 10 da Lei nº 10.741/2003 que dispõe sobre o Estatuto do Idoso e possibilitar a obtenção de indenização por danos morais ao idoso em situação de abandono.

Para justificar a alteração da lei, o deputado declarou que no Brasil, muitos idosos sofrem de abandono de variadas formas, principalmente pelos familiares, causando dor psicológica que afeta a sua saúde.

A partir da análise dos direitos da pessoa idosa, é possível perceber que apesar de estarem protegidos pela legislação brasileira, ainda é grande a lacuna encontrada pela falta de normas que se dediquem a resguardar cuidado ao idoso, com toda sua fragilidade e necessidade. Sendo assim, deveriam priorizar a pessoa idosa, garantindo proteção contra o abandono e negligência familiar.

Diante disso, deve-se preservar o valor essencial à vida, garantindo o direito à dignidade humana e à igualdade por meio da assistência e cuidado que os filhos devem ter em relação aos pais, independente de reciprocidade, para que não se tenha uma banalização do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e acabe gerando a condenação à indenização pelo Abandono Afetivo Inverso.

Portanto, dada a importância do assunto, torna-se necessário analisar cada situação, tendo em vista que o assunto é pouco discutido pelos doutrinadores e pela jurisprudência, uma vez que não se encontra uma posição consolidada, sempre privilegiando como primordial a existência de um início e fim de vida digno.