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A ideologia no cinema: nada é por acaso

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A ideologia no cinema: nada é por acaso
Ivo Di Camargo Junior é doutor em Linguística e Língua Portuguesa pela Ufscar

Sou pesquisador da linguagem cinematográfica há 18 anos. Desde que iniciei meus estudos na faculdade de letras, a sétima arte foi o locus onde apliquei minhas pesquisas iniciais e isso avançou para especializações, mestrado e doutorado, utilizando o diálogo com o filósofo Mikhail Bakhtin como proposta dialógica. Nesse sentido, há uma questão que sempre perpassa quando analisamos um filme ou meramente assistimos por prazer. Até onde um filme pode ser julgado ou analisado pela importância do seu tema?

Meu livro fruto da tese de doutorado

Anos atrás o cineasta Bruce LaBruce afirmou no twitter no momento da cerimônia do Oscar que o filme INFILTRADO NA KLAN (2018) era um filme superestimado e que o “cinema não é ideologia”. Isso traz implicações para o espectador que vê um filme e que pode se colocar a pensar quando assiste um filme. Um filme, na maioria das vezes, traz sérias intenções e motivos implícitos que os idealizadores desejam transmitir ao espectador.

Filmes da atualidade são muito mais julgados e analisados por sua temática e não pela natureza artística e estética do trabalho. As cerimônias do Oscar sempre são muito criticadas porque tal filme não teve atores negros ou minorias não foram representadas. Nesse caso, a relevância que é observada é o ponto de vista ideológico do filme e não a linguagem cinematográfica, realização estética, artística e profissional da obra. Ou seja, o impacto de um filme, para o espectador, deveria ser a conjunção entre conteúdo e linguagem e não somente as implicações externas que motivam determinada discussão.

Dois personagens, mas basicamente são a mesma pessoa. Magia nas telas.

Um filme não é algo sem intenções, sejam elas boas ou ruins. Um diretor de cinema pode inserir temas relevantes em suas obras, contudo, se o seu trato com a teoria e linguagem cinematográfico forem deficientes, a obra certamente terá um efeito contrário ao que se desejou. Observemos o caso de um grande sucesso estético, presente na Netflix. O filme ROMA, do diretor mexicano Alfonso Cuarón, trabalha essa questão. Ainda que o cineasta tenha a intenção de homenagear a sua babá e as memórias de sua infância, é possível perceber um cansaço do espectador com a temática. O filme é belo, mas simplesmente cansa o espectador.

Na atualidade em que vivemos, a relevância do cinema se exacerbou. O confinamento imposto pela pandemia do novo coronavírus aumentou o consumo de filmes, séries e plataformas de streaming. O cinema e o audiovisual se tornaram armas poderosas para divulgação de temas, ideias, sentimentos de mundo. Porém, filmes como Roma, não transmitem de todo a mensagem. Cansam o espectador e matam a intenção inicial do realizador.

As memórias da infância do diretor Cuarón e a convivência com sua babá.

Outro caso a ser analisado é a questão racial presente nos filmes da atualidade. Em 2019, o Oscar levou ao palco da cerimônia dois filmes que tratavam da questão de forma inteligente. O já citado Infiltrado na Klan e GREEN BOOK: O GUIA, ambos de 2018, revelam bem a relação entre o cinema e a inserção de ideologia. Infiltrado na Klan mostra um olhar voltado para o discurso de ódio que se institucionalizou nos Estados Unidos contra a população negra e revela como o racismo é gestado historicamente no país e ensinado entre certos segmentos populacionais brancos. O filme intenciona mostrar um relato histórico de fatos acontecidos, ainda que falhando na execução das respostas, consegue mostrar ao espectador de forma mais empolgante a questão racial e propor o seu diálogo. A linguagem do filme foi capaz de transmitir a sua ideologia sem cansar quem vê a obra, que enriquecida de detalhes, passa a mensagem que desejou.

No filme Green Book: o guia, a forma clássica de linguagem cinematográfica foi a utilizada. Um filme que despretensiosamente trata a questão racial, mas consegue fazer com que o espectador viva a situação dos protagonistas. Se no filme anterior a denúncia era direta, aqui o espectador vai vivenciando a denúncia e criando a empatia com o protagonista negro. Há um equilíbrio na narrativa que permite que uma desconstrução possa acontecer nos personagens e suas condutas possam ser avaliadas pelo público. Há inúmeras possibilidades ideológicas a serem percebidas em um filme como este, inclusive pedagógicas.

O que pode ser percebido é que a ideologia, qualquer que seja a ideologia, pode usar o cinema como ferramenta ou como arma. O filme reforça princípios e apela para o emocional que afeta diretamente o público. Nesse sentido, certos defeitos de certas obras conseguem ser minimizados. Quando o espectador gosta ou não de um filme por causa do seu tema, ele não faz isso de maneira inconsciente. É uma programação feita pelos realizadores para que seja assim. Um filme de qualidade, para transmitir a sua mensagem, precisa ter preocupação com todas os componentes da linguagem cinematográfica. Uma obra artística de qualidade supera a mera ideologia e transmite uma mensagem superior, como no filme A LISTA DE SCHINDLER, onde mesmo com a intenção de denunciar os crimes do nazismo, exaltar um personagem histórico e emocionar o leitor, o filme dosa essa questão ideológica na medida certa.

No filme, a ordem dos personagens e sua posição são essenciais para o entendimento.

O cinema brasileiro pode ser bem exemplificado com o longa QUE HORAS ELA VOLTA? (2015) e como a questão de classes sociais é bem explicitada, organizada, demonstrando a tensão por meio da exposição ideológica. A diretora Anna Muylaert expõe a sua denúncia e visão por meio de um jogo claustrofóbico onde limites bem claros e fronteiras muito delimitadas separam os personagens. A relação entre a câmera e o espaço é evidente. O filme mostra como que a história da sociedade brasileira separa as classes utilizando-se do ambiente doméstico como exemplificação. A ideologia é clara e mostra ao espectador a intenção do diretor.

O que devemos ter em mente é que a linguagem cinematográfica, per se,não é puramente ideológica. Ela é um meio expressivo sem moral já pré-estabelecida. É no seu uso e modus operandi que ela recebe o seu tema, sua forma, sua composição e, assim, o filme ganha a sua ideologia. A linguagem cinematográfica sozinha não tem uma ideologia. Ela tem que ser construída com os elementos fílmicos e é na forma que os elementos são utilizados, combinados, construídos que um filme recebe a ideologia.

Em “Que horas ela volta?”, as barreiras que separam as classes são visíveis.

Um filme utiliza elementos da linguagem cinematográfica simplesmente porque existe. Isso leva à pergunta se é possível existir um filme que não tenha ideologia. Toda escolha que é feita para compor uma obra cinematográfica, ainda que inconscientemente, passa por uma visão de mundo, uma defesa de ponto de vista que trata de uma defesa, implícita que seja, de um olhar particularizado de quem realizou a obra. Sempre haverá um ponto de vista a ser defendido. Até mesmo comédias pastelão possuem ideologias implícitas.

Dessa maneira, ao assistir um filme e partir para uma análise, é preciso ter em mente a sua forma, seu tema como partes do mesmo universo de construção. Só um lado dessa análise pode ser superficial demais e causar leituras erradas de um filme. O que mais importa, nessas análises, é que um filme nunca é só um filme. Ele é um produto social, cultural, humano e ideológico que utiliza uma linguagem especial. As implicações que estão presentes em uma obra são pensadas com objetivos claros. Reconhecê-los é o que nos faz dar o primeiro passo para ser espectadores mais aprofundados em linguagem cinematográfica.

Assistir “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, e não perceber a ideologia e atualidade é um desafio

Referências
DI CAMARGO, I.Jr. Mikhail Bakhtin na linguagem cinematográfica. Mentes Abertas. São Paulo. 2020.