STJ fixa conduta para reconhecimento de suspeitos

Innocence Project Brasil provou que reconhecimento mal feito manteve jovem 2 anos na prisão por crimes que não cometeu

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Imagem Ilustrativa

O Brasil conheceu a história do pedreiro Robert Medeiros da Silva Santos no último domingo, dia 11, por meio de uma reportagem do Fantástico. Ele passou dois anos na cadeia cumprindo pena por dois assaltos a ônibus que nunca cometeu, e só deixou a cadeia depois de um trabalho incansável do Innocence Project Brasil, entidade sem fins lucrativos que tem como objetivo reverter a condenação de inocentes.

Robert foi vítima de um processo de reconhecimento errôneo que não observou as devidas normas do Código de Processo Penal (CPP). Graças ao trabalho do Innocence Project Brasil, que investigou os casos e detectou que se tratavam de erros judiciários, ele saiu da prisão no fim do ano passado, mas somente agora conseguiu se livrar das duas injustas acusações que caíram sobre si.

Morador da periferia de São Paulo, Robert, então com 20 anos, foi abordado por policiais do 102º Distrito Policial na noite de 28 de novembro de 2018 para colaborar com uma investigação. O pedreiro, de boa fé, acompanhou os policiais sem a companhia de um advogado. Quando chegou à delegacia, descobriu que estava sendo investigado por um assalto a ônibus que jamais cometera. Naquela mesma noite já foi preso a partir do reconhecimento de uma única testemunha, o motorista do ônibus.

Em um processo cheio de erros, Robert foi condenado a cinco anos de prisão em regime semiaberto, mas o Ministério Público apelou, e uma nova sentença fixou sua pena em dez anos e quatro meses. Em razão do primeiro reconhecimento equivocado, Robert passou a ser apresentado a outras vítimas como alguém já identificado em outros assaltos, e por conta disso acabou sendo condenado por um segundo roubo. Mais seis anos e oito meses. Condenado a 17 anos e dois meses, Robert, que entrou na delegacia para colaborar, ficou 756 dias trancado em uma cela sem poder ver o filho, que tinha sete meses de idade quando ele foi privado da liberdade.

Reconhecimento

Advogada Dora Cacalcanti é uma das idealizadoras do Innocence Project Brasil

Foi a namorada de Robert, Vitória, quem descobriu o Innocence Project e pediu ajuda. Lançado em 2016 no Brasil pelos advogados Dora Cavalcanti, Flávia Rahal e Rafael Tucherman, o projeto integra a Innocence Network, uma coalização de 68 organizações em 12 países. De março a novembro do ano passado, a equipe do Innocence se debruçou sobre os processos, analisou dados, entrevistou parentes de Robert, solicitou perícia, fez pesquisas sobre outros casos de assalto na região e concluiu que o pedreiro havia sido condenado única e exclusivamente por causa do reconhecimento do motorista, dois meses depois do fato. Não havia nenhum outro indício que desabonasse a conduta do jovem pedreiro. Outra vítima que estava no ônibus não reconheceu Robert.

“Não se trata de má-fé da testemunha, mas sim de uma realidade já bastante estudada. A atribuição equivocada de autoria é produto de um fenômeno chamado na psicologia de falsas memórias. Ao buscar resgatar o passado, a vítima assimila informações, distorce a lembrança e, sem intenção, confunde-se. Em operação está a natureza maleável da percepção humana, a habilidade imperfeita de relembrar episódios perturbadores”, destaca a advogada Dora Cavalcanti, no habeas corpus ao STJ que soltou Robert.

Reversão

A reversão dos dois trágicos erros judiciários já é fruto da aplicação do entendimento fixado em outubro passado pelo STJ. O ministro do STJ Rogério Schietti fixou a tese de que o reconhecimento de pessoas deve seguir o roteiro normativo fixado do artigo 226 do Código de Processo Penal. Primeiramente, a testemunha é convidada a descrever a pessoa segundo suas lembranças, só depois é que deve ser convidada a tentar reconhecer um suspeito em meio a uma fila de pessoas parecidas, sem a prévia exibição de uma fotografia do suspeito

Ao definir a nova orientação jurisprudencial, que agora deve ser seguida por autoridades policiais de todo o país. “O STJ mandou uma mensagem clara: ninguém pode ser preso e condenado somente com base em reconhecimento feito de forma irregular. A contaminação da memória foi considerada na decisão do ministro Schietti. É um avanço considerável para a defesa dos direitos no Brasil. Ninguém ganha com a prisão de inocentes”, comemora Dora Cavalcanti.