Tribunal veta pagamento de supersalários na Câmara de Ribeirão

Decisão considerou inconstitucionais incorporações de remuneração que ampliam salários de servidores em até 15 vezes; cortes devem atingir pelo menos 25 servidores

0
Câmara de Ribeirão Preto | Foto: Divulgação

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) acabou com a farra dos supersalários pagos a funcionários da Câmara de Ribeirão Preto. Em decisão da semana passada e publicada nesta quarta-feira (1º), o Judiciário declarou inconstitucional o pagamento de vantagens indevidas que chegavam a multiplicar por 15 o salário de alguns dos profissionais. Há casos de servidores que ganham na casa dos R$40 mil e que, com a decisão, devem ter seus salários reduzidos para R$3 mil. Com isso, o Legislativo deve cessar os pagamentos imediatamente.

A decisão do TJ foi motivada por uma ação direta de inconstitucionalidade promovida pelo Ministério Público de São Paulo. O caso havia sido denunciado pelo jornalista Nicola Tornatore, do jornal Tribuna, em 2017, e ensejou também uma série de reportagens especiais do portal Farolete, comandado pelo jornalista Cristiano Pavini.

A Justiça considerou inconstitucional três aspectos levantados pelo MP: a incorporação do chamado Regime de Tempo Integral (RTI) aos salários dos servidores, o que gerava um ganho de até 100% na remuneração; a incorporação de gratificações e indenizações aos salários e a incorporação dos valores recebidos por funcionários efetivos que exerciam cargos em comissão. 

“Em suma, a presente ação é acolhida para a) conferir aos arts. 1º e 2º da Lei Complementar nº 3.033, de 28 de agosto de 2020, do Município de Ribeirão Preto, interpretação conforme a Constituição para obstar a acumulação das incorporações mantidas em decorrência da revogação do art. 2º da Lei nº 5.081, de 02 de julho de 1987 e do § 7º, do art. 50, da Lei Complementar nº 2.515, de 28 de março de 2012 e ainda para que essas incorporações sejam limitadas à diferença entre a remuneração do cargo ou função comissionada e a remuneração do cargo efetivo e b) conferir interpretação conforme à Constituição aos arts. 3º e 4º da Lei Complementar nº 3.033, de 28 de agosto de 2020, do Município de Ribeirão Preto, para afastar a incorporação da gratificação decorrente da revogação do art. 214 e seus parágrafos 1º, 2º, 3º e 4º da Lei nº 3.181, de 23 de julho de 1976, recebida pelo desempenho das funções de cargo comissionado”, afirma o acórdão.

O esquema

O esquema para pagamento de supersalários funciona da seguinte forma: as sucessivas Mesas Diretoras do Legislativo abriam concursos para funções que exigiam pouca escolaridade, como porteiro, faxineiro e telefonista. Os processos seletivos, notadamente os realizados a partir de 2010, eram marcados com pouca antecedência e não tinham divulgação. Os salários também eram pouco atrativos, raramente ultrapassando um salário mínimo e meio.

Apesar da pouca atratividade, as vagas acabaram preenchidas por profissionais de escolaridade bem superior à exigida. Uma advogada, que foi mulher de um ex-presidente da Câmara, por exemplo, ingressou no Legislativo após passar em um concurso de porteiro. Um jornalista ingressou depois de ser concursado como zelador e parentes de outro vereador ingressaram após aprovação como telefonistas.

Tão logo ingressaram no serviço público, entretanto, os novos servidores foram empossados em cargos de comissão que elevavam seus salários para até 15 vezes a remuneração inicial. Esses valores, graças às leis aplicadas, acabavam incorporados ao salário dos funcionários de forma permanente. 

Graças a isso, a mulher do ex-vereador, por exemplo, recebe hoje cerca de R$20 mil, mesma faixa salarial do jornalista citado. Existem pelo menos 25 servidores que ainda estão na Câmara e que se enquadram nessa mesma categoria. 

Revogado

Depois da Operação Sevandija, em 2017, o Legislativo parou de pagar as incorporações salariais e o adicional de RTI aos funcionários, mas manteve o pagamento das verbas para servidores que já estavam nos quadros do Legislativo há mais de cinco anos. Essa decisão também foi considerada inconstitucional pelo TJ.

“Ou seja, ainda que expressamente revogados os dispositivos que criaram as incorporações de gratificações inconstitucionais, a lei revogadora garantiu a incorporação das verbas instituídas em desconformidade com a Constituição Estadual”, afirma o MP na ação. A tese foi acatada pelo Judiciário e os pagamentos devem ser suspensos.

Embora a decisã atinja principalmente o Legislativo, os efeitos também podem se estenter às incorporações realizadas por funcionários do Executivo, principalmente em cargos de chefia e assessoramento. De acordo com uma estimativa do Farolete, a medida do TJ pode gerar economia anual de R$1 milhão aos cofres públicos, considerando apenas a Câmara, caso os benefícios sejam interrompidos.

Picaretagem

Para o desembargador, “a manutenção da incorporação de gratificação pelo desempenho de serviço em regime de tempo integral desenvolvida no exercício de cargo de provimento em comissão configura inequívoca ofensa ao disposto no art. 111 da Constituição Bandeirante”. 

Da mesma forma, o TJ determinou ainda a não incorporação dos valores recebidos pelos servidores que ocupavam cargos em comissão ao salário já que, no entender do TJ, o direito garantido aos servidores que já recebiam as incorporações ofende o princípio da moralidade. “A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência”, diz a decisão.

Na Justiça 

Segundo o cientista político José Elias Domingos Costa Marques, a Câmara de Ribeirão pode responder na justiça pelo pagamento indevido dos benefícios. E pode, ainda, ter que devolver o dinheiro aos cofres públicos.  “Quando você conduz o pagamento ou benefício a alguém mediante a retirada de dinheiro de maneira irregular, é óbvio que o ressarcimento é a principal medida a ser tomada”. 

O especialista disse ainda que o caso deve passar por uma avaliação do dolo das medidas adotadas. “Muitas vezes são aprovadas leis específicas para garantir determinadas tutelas e interesses. Então, quando você aprova esse tipo de pagamento de supersalários a funcionários, normalmente, é uma troca de favores. Essa iniciativa do TJSP é muito válida porque estamos falando de dinheiro público sendo colocado no bolso de outras pessoas”. 

Para Marques, “essa decisão na verdade nem deveria existir porque a própria iniciativa da Câmara Municipal através das suas comissões, dos funcionários e parlamentares que estão ali efetivamente envolvidos para prestar um bom serviço público enquanto agentes políticos, eles têm que ter ciência de que qualquer tipo de privilégio deve ser condenável”.

“A Câmera parece que não consegue ser auto-tutelar, ela precisa sempre perder na Justiça para poder caminhar de maneira coerente no sentido da boa institucionalidade e das boas práticas democráticas. Isso preocupa muito porque demonstra claramente que muitas vezes a Câmara age não em sintonia com os desejos da sociedade, mas com os interesses daqueles que a ocupam e isso é muito perigoso”, finaliza o cientista político. 

Outro lado

Procurada, a Câmara ainda não se manifestou sobre o assunto. Assim que o fizer, o texto será atualizado.