Ribeirão Preto dificilmente esquecerá a primeira semana do mês de março de 2020. Dois jovens – um rapaz de 19 anos e uma adolescente de 16 – cometeram suicídio da mesma forma: pulando do último andar de um shopping no centro da cidade. A adolescente era minha sobrinha. E não há como escrever cada linha deste texto sem a lembrança dos almoços em família aos domingos, onde a vi crescer brincando com os primos, dois deles meus filhos.
Minha homenagem à querida Lalá é na forma de reflexão sobre a maneira como estamos tratando o assunto nas nossas famílias, na imprensa e principalmente nas redes sociais. Embora nenhum veículo oficial de comunicação tenha noticiado qualquer um dos dois suicídios, a cidade inteira soube e comentou. Vídeos e fotos foram compartilhados principalmente por pessoas que possuem contas no facebook e em grupos de whats app.
Com a mesma naturalidade com que as imagens foram postadas surgiram os mais hediondos, desqualificados, descontextualizados, desinformados, cruéis, desumanos e preconceituosos comentários. As análises que não se enquadravam nestes adjetivos se referiam à falta de Deus no coração e ausência dos pais no acompanhamento e educação. Tive ganas de responder um a um estes comentários, mas respirei fundo e aplaquei o ímpeto raivoso graças a uma iluminação divina que me fez entender a doença que acomete cada um dos que se escondem no mundo sombrio das redes sociais. Minha sobrinha estava doente e os que a atacaram também. Precisam de diagnóstico e tratamento ainda não disponíveis em nosso sistema de saúde.
Já a imprensa oficial está acossada com a onda crescente de suicídios entre adolescentes e jovens sem saber como se portar. Há correntes que defendem a possibilidade de falar sobre o assunto sem abordar o fato em si. Enquanto isso, ainda impera um código de ética tácito nas redações: Não se noticia suicídio! Como este dogma chegou até os dias de hoje é inexato, difícil de rastrear. Mas a origem apontada é o chamado Efeito Werther, referência à obra do alemão Johann Wolfgang Goethe, escrita em 1774.
“Os sofrimentos do jovem Werther” é considerado um marco na literatura européia pelo estilo e densidade da história narrada a partir de cartas de um jovem apaixonado por uma donzela comprometida. Werther escreve a um amigo para contar os dias em que passa num sofrimento indizível de amor: “Não, não me engano! Leio em seus olhos negros o sincero interesse que tem por mim e por meu destino”. Goethe cria uma das mais compugentes imagens da adoração de um ser ao outro: “Mandei o meu criado ao encontro dela, só para ter junto de mim alguém que tivesse estado em sua presença. Com que impaciência o esperei, com que alegria tornei a vê-lo! Não tivesse vergonha e teria me atirado ao seu pescoço e coberto seu rosto de beijos”. E arremata com leveza, admitindo a inconcebível ideia ao amigo que lê a carta: “Deus te livre de rir disso, Guiherme! Serão sempre os fantasmas os responsáveis por nos sentirmos bem? “
“Os sofrimentos do jovem Werther” é uma obra onde vida e ficção se misturam claramente. Goethe realmente se apaixonou pela esposa de um amigo. E não escondia isso do casal, assim como o herói romântico o faz no livro. Werther se torna amigo de Alberto, o prometido de sua amada, Carlota. Brinca com as pistolas que Alberto mantém penduradas na parede, chega a apontar um delas para a própria cabeça. Mas o autor não quer se matar e na segunda parte do livro somem as cartas e a narrativa passa a ser direta, apontada para uma personagem que Goethe introduz à guisa de subsituir Werther em seu martírio de amor. E é o jovem Jerusalem que também se apaixona perdidamente e comete o suicídio com uma pistola de Alberto.
Há quase dois séculos e meio começava o efeito Werther. Suicídios de jovens registrados após a publicação do livro levaram um certo bispo Lorde Bristol a relacionar as mortes à história publicada, não demorando a pedir a proibição da obra. Goethe reagiu com firmeza questionando o apoio da igreja deste bispo aos reis que numa penada mandavam jovens para serem trucidados nas guerras. Perguntou Goethe se o bispo agiria com a mesma veemência contra estes governantes.
Mais do que o tabu herdado pelo jornalismo, Goethe nos deixou um tratado sobre a dor de uma alma que ele compara ao sofrimento de uma doença física. No embate com o rival Alberto, Werther argumenta: “A natureza humana tem seus limites; pode suportar até certo ponto a alegria, a mágoa, a dor, mas passando deste ponto ela sucumbe. A questão não é, pois, saber se um homem é fraco ou forte, mas se pode suportar o peso dos seus sofrimentos, quer morais, quer físicos. E eu acho tão espantoso que se chame de covarde ou de desgraçado àquele que se priva da vida, como acharia impertinente tachar de covarde ao que sucumbe de uma febre maligna”. E mais: “E não é esse o mesmo caso da enfermidade? A Natureza não encontra nenhuma saída desse labirinto de forças intrincadas e antagônicas, e o homem tem de morrer. Ai daquele que, à vista disso, fosse capaz de dizer: ‘Que louca! Se tivesse esperado, se houvesse deixado o tempo correr, o seu desespero ter-se-ia acalmado e em breve encontraria um outro que a consolasse’. É exatamente como se alguém dissesse: ‘O louco vai morrer de febre! Se tivesse esperado até que suas forças voltassem, até que houvessem corrigido seus humores e apaziguado o tumulto de seu sangue, tudo se restabeleceria e estaria vivendo até hoje”.
A nossa querida Laura estava doente. Não lhe faltou tratamento adequado em quatro anos com psicólogos e psiquiatras. Recebia medicação e era cercada de todos os cuidados por pai, mãe e irmão zelosos, foi transferida para uma escola onde recebia a palavra de Deus e a orientação para o sentido da vida. Nada disso a demoveu da ideia de acabar com a dor que só ela sabia. Deixou cartas de despedida onde falava de amor, reconhecimento por todo o apoio e carinho que sempre havia recebido. Nenhuma ponta de mágoa, nenhuma raiva, a não ser o desconforto com o seu próprio ser, um transtorno de personalidade que a fazia se entender não tão inteligente quanto realmente era, não tão bela quanto nós a enxergávamos, não tão doce quanto gostaria.
Ao que parece, ainda não escaneamos o grau e o limite desta doença a partir dos quais nada mais é possível de ser feito. E quando isso se der, talvez se abrandem as culpas de quem dedica a própria vida aos outros, quando não aos seus, na crença de que sempre é possível evitar o fim fora do script. E para quem julga, recorro mais uma vez à fala do jovem Werther: “É lamentável que vós, os homens, não podeis falar de nada sem dizer primeiro: Isto é louco, aquilo é prudente, isto é bom, aquilo é mau! E o que significa tudo isso? Por acaso buscastes alguma vez, antes disso, as íntimas circunstâncias de um ato? Sabeis precisar com certeza as razões por que ele ocorreu, por que ele teve de ocorrer? Se tivésseis feito isso não seríeis tão prontos em vossos juízos”.